Margaret Atwood entra na campanha pelo aborto na Argentina

A atriz Elizabeth Moss em cena da série “The Handmaid´s Tale” (Foto Divulgação)

A Argentina vem debatendo a legalização do aborto até a 14a semana de gestação. O projeto de lei já foi aprovado na Câmara de Deputados e, nesta terça (10), começará a ser discutido no Senado, com expectativa de ser votado até o dia 8 de agosto. O presidente Mauricio Macri, que é contra a medida, mas que afirmou que não a vetará se for aprovada pelo legislativo, impulsou o debate como parte de uma estratégia política para resgatar sua aprovação popular, que caiu de 58% a 35% nos últimos meses por conta da degradação da economia. Macri também responde a uma intensa pressão de grupos feministas que, desde os últimos anos, vêm se organizando para pedir que a lei avance.

Em meio a tudo isso, as defensoras da causa ganharam uma nova e inusitada adepta, a escritora canadense Margaret Atwood, 78, autora de “The Handmaid´s Tale”, um romance escrito nos anos 1980 e que descreve como um Estado teocrático toma conta do que antes eram os Estados Unidos e estabelece aí um mundo de regras e valores estritos. Tudo gira em torno de aproveitar ao máximo a fertilidade de algumas mulheres, uma vez que, neste mundo imaginário, o índice de natalidade vinha caindo a níveis dramáticos e os ideólogos da chamada República de Gilead resolvem submeter as mulheres ainda férteis a uma atividade única: reproduzir. Transformadas em mucamas, são levadas a passar temporadas nas casas dos comandantes _homens nobres do regime_, onde são estupradas regularmente até ficarem grávidas. Nascidos os bebês, estes ficam com a família do comandante e elas são designadas a outras casas. O livro fez com que Atwood ganhasse prêmios e inspirou uma série de TV, que se encontra agora na segunda temporada.

No final do ano passado, Atwood esteve em Buenos Aires. Numa conversa na Biblioteca Nacional com seu diretor, o também escritor Alberto Manguel, revelou que uma das inspirações para criar esse pesadelo que é a chamada República de Gilead foi, justamente, o que havia ocorrido na Argentina nos anos 1970. Durante a ditadura militar (1976-1983), centenas de mulheres grávidas que atuavam na resistência ao regime foram encarceradas, seus companheiros foram mortos imediatamente, e elas, mantidas vivas até dar à luz. Os bebês eram, então, entregues a famílias de militares com dificuldades de ter filhos, enquanto as mães eram executadas nos centros clandestinos de detenção.

Atwood, que é reconhecidamente uma feminista, também reuniu-se com grupos de mulheres que defendem penas mais duras para a violência contra a mulher _na Argentina hoje, uma mulher é morta a cada 29 horas_ e se pronunciou a favor do aborto. Hoje, o recurso é permitido no país apenas em casos de estupro, risco de vida da mulher e má-formação do feto.

Suas palavras não demoraram a ecoar no Congresso. No momento de emitir seu voto, favorável ao aborto, a deputada Victoria Donda mencionou a República de Gilead a partir de um ponto de vista particular. Donda nasceu na ESMA (Escola Mecânica da Marinha), um dos centros clandestino de prisão e tortura. Sua mãe foi morta aí após seu nascimento e ela viveu anos pensando ser filha do militar que havia se apropriado dela (sua intervenção está no vídeo abaixo). Associou sua experiência à ficção para mostrar que a realidade humana muitas vezes esteve próxima aos horrores que o livro descreve. Neste caso, um extremo no qual um Estado submete as mulheres a serem meras procriadoras e os embriões, algo que se pode distribuir à gosto, como, afirma Donda, fizeram com ela mesma.

O segundo episódio desta novela entre Atwood e a lei do aborto foi quando a escritora emitiu um tuíte pedindo que a presidente do Senado (também vice-presidente do país), Gabriela Michetti, uma mulher católica e anti-aborto, não colocasse mais tantos obstáculos à lei. Michetti, que irá liderar a votação final, tem dado declarações polêmicas e oferecido alternativas como entregar as crianças à adoção (ignorando que assim obriga-se a mulher a passar pela gravidez de qualquer forma). Em uma entrevista recente, disse: “A mulher pode dar em adoção, ou ver o que acontece durante a gravidez, trabalhar com um psicólogo, não sei. Há pessoas que vivem coisas muito mais dramáticas e não podem soluciona-las e mesmo assim têm de viver com isso.” Usou como base de seu argumento que “os pobres têm muitos filhos, sete, oito, e não parece ser um problema.”

Os grupos de defesa dos direitos da mulher ficaram em choque com as declarações de Michetti, e mais uma vez, Atwood veio em seu auxílio, por meio de mensagens nas redes sociais dirigidas a ela. Pediu que Michetti não “virasse o rosto para as milhares de mulheres que morrem por ano por causa de abortos ilegais” e que “desse às mulheres argentinas o direito de decidir”, acrescentando: “as argentinas estão lutando por seus direitos e suas vidas.”

Michetti não respondeu, apenas afirmou que não conhecia a autora e nem a obra e que as que militam pelo aborto querem uma sociedade “mais individualista, que só pensa em seu prazer e em seu próprio umbigo”.