A diferença entre o que Duque quer e o que Duque pode fazer com o acordo com as Farc
Poucos colombianos, alguns parlamentares e pouquíssimos analistas políticos nacionais e internacionais de fato leram o calhamaço que é o acordo de paz entre o Estado colombiano e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), aprovado no fim de 2016, e que permitiu que a guerrilha se desmobilizasse, entregasse suas armas, que muitos de seus ex-combatentes entrassem no programa de reinserção social e trabalhista já em andamento e que 2017 fosse o ano com menos homicídios no país desde 1975.
Pois o presidente eleito da Colômbia, Iván Duque, havia lido o texto e suas entrelinhas, quando era um porta-voz do “não” no plebiscito da paz, em 2016. Na época, fui a seu despacho de senador, no Congresso Nacional de Bogotá, em plena campanha, Duque demonstrou saber do que estava falando.
Educado, gentil, me recebeu com o calhamaço sobre a mesa de seu escritório. Várias páginas estavam marcadas com cores diferentes, vários artigos grifados. Eu lhe perguntei, em linhas gerais, porque ele considerava o acordo ruim. Com uma retórica excelente e rapidez de pensamento, ele ia virando as páginas de um lado a outro para apontar que artigos, e eram vários, segundo ele, entravam em contradição com outros.
Duque gastou mais de uma hora para explicar porque sua posição, baseada em razões políticas mas também por todos os detalhes técnicos que ele apontara, era de que não era necessário jogar o acordo no lixo, mas sim refaze-lo com calma, votando “não” naquela ocasião e ganhando tempo para fazer um documento melhor, ajustando esses pontos. Atribuía a pressa do presidente Juan Manuel Santos a uma vaidade política de deixar, como de fato deixou, o acordo entregue. Não se pode tirar a razão dele neste ponto. Santos foi de fato apressado.
Já em 2017, pré-candidato e com o acordo já aprovado, celebrado mundialmente, e sendo implementado ainda que com vários tropeços e demoras, Duque apresentou outra visão. De fato, agora, acordo aprovado, para ele não havia volta atrás, e começou a buscar meios para defender ajustes e correções nos pontos que ele considerava mais complicados.
Durante a campanha, neste 2018, repetiu em cada debate e programa a que compareceu que “não rasgaria” o acordo. Ou seja, se logo depois de 7 de agosto, quando assumir, Duque vier com um decreto ou com uma atitude mais dura contra o tratado, já poderá ser acusado de estelionato eleitoral.
O novo presidente colombiano é pragmático, e escolheu os três pontos que considera cruciais e que têm alguma margem de manobra para serem modificados. Isso porque, quando o acordo ficou pronto, houve uma decisão aprovada pelo Congresso e sustentada pela Suprema Corte do país de que o tratado ficaria “blindado” por pelo menos 12 anos. Ou seja, não bastaria, para fazer mudanças substanciais, uma maioria no Congresso, teria de haver também uma decisão judicial que derrubasse a blindagem.
Como outra coisa que Duque vem repetindo é que a Justiça em sua gestão será completamente independente, seria também uma espécie de traição a seu eleitorado ve-lo pressionar os juízes da Suprema Corte a derrubar a blindagem.
Quais são esses pontos? Um dos artigos diz que “todas as atividades da guerrilha que buscavam seu financiamento serão anistiáveis”, entre elas, pode-se entender a extorsão de camponeses e comerciantes, o contrabando e o narcotráfico. Duque quer tirar o narcotráfico dessa lista, pois o considera crime de lesa humanidade. E crê que pode fazê-lo ao convencer parlamentares e juízes que “atividades da guerrilha que buscavam seu financiamento” pode ter uma interpretação mais fechada. Seu desejo é que o “narcotráfico” seja considerado um “crime de lesa humanidade” e, portanto, imprescritível e não anistiável.
Porém, essa não será uma decisão dele, afinal, trata-se de uma interpretação para a aplicação da lei e quem a deve fazer serão os juízes determinados pelos tribunais da paz (JEP). O presidente poderá sugerir, negociar, mas não impor a mudança.
O segundo ponto tem relação aos ex-guerrilheiros que ganharam vagas no Senado e na Câmara de Deputados. São dez, escolhidos pela própria guerrilha. Basicamente, são os que antes eram líderes de frentes guerrilheiras. Essas dez vagas estão garantidas neste próximo mandato e no que se inicia em 2022. Duque não deseja retirar esse ponto do acordo nem barrar a entrada dos ex-guerrilheiros no Congresso.
Aliás, a Colômbia já viveu isso em outras desmobilizações no passado e vê, de modo geral, como algo aceitável para encerrar um conflito. A desmobilização do M-19 nos anos 1990, por exemplo, considerada um êxito, ocorreu com a condição de que um número determinado de ex-guerrilheiros entrassem no parlamento e integrassem a Assembleia Constituinte que formulou a atual Constituição em vigor no país. Foi assim que o esquerdista Gustavo Petro, por exemplo, segundo lugar nessa disputa, entregou suas armas e virou senador, depois prefeito de Bogotá e candidato a presidente da República.
O que Duque quer evitar é que entrem no parlamento figuras que já possuem condenações emitidas pela Justiça colombiana antes do acordo de paz ter sido assinado. E para isso talvez ele não tenha tanta dificuldade, uma vez que as condenações ocorreram antes das negociações. Porém, esse gesto seria uma declaração de guerra com a ex-guerrilha, porque a maior parte dos que entraram no Congresso têm, sim, condenações já emitidas. E não querem deixar seus postos no parlamento, foi para isso que se desmobilizaram. A ameaça de que resolvam voltar para os montes e juntar-se a outras guerrilhas ou às chamadas Bacrim (bandos de criminosos) é grande.
Se aqui Duque não esbarra na blindagem do acordo, por outro lado, corre o risco de fazer o sangue voltar a correr no campo colombiano.
Por fim, o terceiro ponto, e o mais controverso, é o que regula os tribunais especiais. Duque não deseja elimina-los, mas sim torna-los vinculados à Justiça regular e também ao próprio Executivo. É neste ponto que a batalha campal já está aberta, pois o atual Congresso ainda deve regulamentar alguns aspectos de como funcionará a chamada JEP (Justiça Especial para a Paz). Mas, como foi dito antes, é dos artigos já blindados. Para mudar, Duque terá de fazer um contorcionismo que pode configurar em um abuso de autoridade.
A tendência, pelo menos até 7 de agosto, é que ele siga com esse discurso brando, em que tenta contentar os uribistas extremos, que querem o acordo jogado no lixo, dizendo a eles que “haverá correções”, de modo evasivo. Ao mesmo tempo, seguirá tentando uma conciliação com os 8 milhões de eleitores de Gustavo Petro que emitiram seu voto esperando a continuidade da implementação do tratado de paz. Duque já elogiou, mais de uma vez, os avanços que a Colômbia vem tendo em termos de imagem internacional justamente por ter atingido a paz. Juan Manuel Santos até ganhou um Nobel por isso.
Se quiser começar governando uma Colômbia que vem ostentando uma imagem excelente no exterior, atraindo investimentos relacionados à paz, não poderá ir para cima do acordo, que teve um respaldo internacional sem precedentes. Consertar os pontos que considera problemáticos é possível, mas devem ser feitos não só com tato político e inteligência estratégica, mas respeitando uma legislação que o Congresso colombiano aprovou e do qual a Corte Suprema é hoje sua guardiã. Qualquer ação mais agressiva neste último ponto poderá ser considerada abuso de poder. E Duque, além de inteligente, não é dado a tomadas brutais de decisão como seu padrinho político, o ex-presidente Álvaro Uribe.
Vamos ver como ele resolve essa equação.