Inflação é pedra no sapato de Macri

Sylvia Colombo
Nota de mil pesos, recém lançada na Argentina (Foto Sylvia Colombo)

Quando Mauricio Macri ganhou as eleições em 2015, parte de seu discurso de campanha era que ele evitaria que a “Argentina virasse a Venezuela”. De fato, isso não aconteceu. E nem creio que aconteceria caso houvesse perdido _a situação venezuelana é terrivelmente mais grave.

De qualquer maneira, o slogan foi convincente, e ajudou não apenas Macri, mas também outros líderes de centro-direita que chegaram ao poder na América Latina nos últimos años.

Talvez por isso não foram poucos os argentinos que sentiram um gosto amargo na boca ao agarrar, pela primeira vez, a nova nota que acaba de entrar em circulação: o bilhete de mil pesos (acima). Não é o primeiro do período macrista. Quando assumiu, o bilhete de valor mais alto que havia era o de 100 pesos. Em dois anos de mandato, já foram lançados o de 200, o de 500, e agora este, de 1000.

Mas, não é mais ou menos isso que ocorre na Venezuela? Ali, uma inflação astronômica faz com que cidadãos tenham que caminhar pelas ruas carregando bolsas de plástico com vários blocos de notas para comprar nada mais que a simples “arepa” do dia a dia. Até que, de tempos em tempos, o governo decide emitir uma nota de valor mais alto.

Hoje, o país com mais inflação na região é a Venezuela, mas o segundo lugar é da Argentina, apesar de tantos elogios e do oba-oba internacional com relação à gestão macrista.

A nota de 1000 pesos argentina ainda remete a outros paralelos amargos. Nos anos 1990, quando Menem era presidente e um peso valia um dólar, se existisse um bilhete como este, seria suficiente para comprar uma passagem de avião Buenos Aires – Nova York. Hoje, apenas paga um jantar para duas pessoas num restaurante médio com um Malbec honesto.

É verdade que Macri herdou de sua antecessora uma economia estancada, com inflação maquiada, um sistema de previdência arcaico e cheio de privilégios indevidos, travas protecionistas, além de um excesivo gasto social e um sistema de subsídios extremamente generoso, até para os mais ricos.

Tudo isso era fácil de manter em épocas de vacas gordas, como foi a do “boom das commodities”, que correspondeu ao período kirchnerista (2003-2015). O caso é que o mesmo não vem ocorrendo agora, e ajustes são necessários.

É preciso dizer que Macri não mentiu quando disse que estes seriam feitos. Tampouco deixou de cumprir a promessa de faze-los pouco a pouco. Os cortes dos subsídios nos serviços vêm sendo feitos de modo gradual.

Porém, se aos olhos dos analistas internacionais e dos líderes estrangeiros que visitam o país, a receita aplicada é a correta, por que se vê tantas queixas do cidadão comum com relação ao preço das coisas? Por que começam a pipocar greves e protestos? Por que famílias humildes vêm reclamando que o dinheiro não chega até o fim do mês? Por que tem gente deixando o carro na garagem e preferindo caminhar, por não ter com que pagar o combustível?

Se o país voltou a crescer, por que os preços das coisas dão a sensação de que a economia está descontrolada?

É verdade que a inflação caiu muito. De 2016, quando estava em 40%, foi para 25%, com que fechou 2017. Mas 25% ainda é muito. E o próprio ministro da Fazenda, Nicolás Dujovne, declarou recentemente que este era um problema mais difícil de resolver do que a equipe econômica esperava.

A grande questão por trás da inflação argentina é o imenso déficit de orçamento, que o governo vem financiando de duas maneiras: emitindo bilhetes ou adquirindo dólares fora, ou seja, endividando o país, e vendendo-os ao Banco Central, o que resulta em mais pesos em circulação. Ou seja, as duas soluções criam mais inflação.

Outro elemento que gera mais inflação é justamente o remédio para corrigir os vícios da era kirchnerista. Cortar subsídios e aumentar preços de serviços, como acaba de ocorrer com o transporte. A partir deste mês, subirão também os preços dos combustíveis, da eletricidade, do gás e da água. Se o fim dos subsídios é um mal necessário para melhorar a economia a longo prazo, a curto prazo provoca aumentos indesejados e impopulares.

A persistência da inflação fez com que o governo recalculasse suas metas. Antes planejava que em 2019 se chegaria a uma inflação de um dígito, mas isso acaba de ser adiado para 2020 _ou seja, para depois da próxima eleição presidencial. Para 2018, fixaram que se chegaria a dezembro com 15%, mas especialistas duvidam de que seja possível.

Se até aqui havia um consenso de mais da metade da população de que o caminho escolhido por Macri era o correto, e com isso o governo obteve uma contundente vitória nas eleições legislativas, agora começa a haver sinais de mudança dos ânimos.

O argentino não é o povo mais paciente do mundo para esperar que medidas a longo prazo deem resultado. Aqui, não há sentimentos moderados quando se trata de política. Governos vão da épica à tragédia em questão de meses. Ocorreu com Alfonsín, com Menem, com Cristina e com outros.

A inflação foi o tema de maior preocupação dos argentinos em 2017. Mas a inquietação tomou forma concreta quando o Congresso aprovou a reforma da previdência, em dezembro. Do lado de fora, armou-se um cenário de guerra, com militantes violentos e repressão forte, dezenas de civis e de policiais feridos. Não se via algo parecido desde dezembro de 2001, quando explodiu a crise que que obrigou o então presidente Fernando de la Rúa a deixar a Casa Rosada, literalmente, em um helicóptero.

Obviamente não se trata da mesma situação, e por ora é pouco provável pensar que Macri possa ter de abandonar o poder dessa forma _embora em muitos protestos já surjam cartazes com o desenho de um helicóptero, ou gente usando helicópteros feitos de papelão na cabeça e nele escrito “voa Macri”.

O que vem preocupando o governo são os números em caída livre da aprovação popular da gestão, justamente registrados depois da reforma da previdência ter passado. A pesquisa D’Alessio IROL/Berensztein mostra que a imagem positiva do presidente está em 45%. Um número alto, mas mais de dez pontos a menos que a cifra logo após as legislativas, de 58% (instituto Isonomía). A reação imediata do presidente foi a de adiar a reforma trabalhista.

Dois anos depois de assumir o poder, o discurso de Macri não pode continuar a ser o mesmo da campanha eleitoral. O presidente não pode mais usar a desculpa de que “iríamos virar a Venezuela” enquanto não para de emitir bilhetes, e não pode continuar colocando toda a culpa no kirchnerismo. Afinal, há dois anos, quem governa a Argentina é ele. E foi dele a promessa de que a inflação cairia rapidamente. Não caiu.

Macri pode estar no caminho correto, mas precisa ajustar o discurso, minimizar expectativas e ser mais realista com relação ao que de fato vai poder entregar até o fim de seu mandato. Talvez seu legado seja o de uma economia mais organizada, um país mais aberto (embora os tão esperados investimentos de fora estejam vindo a conta-gotas), mas com problemas crônicos que até agora estão sem solução: entre os mais importantes, a inflação e o endividamento, que parecem estar formando uma bola de neve.

Enquanto isso, a crispação começa a ganhar as ruas novamente, e não é raro ouvir aqui e ali as panelas voltando a soar ao anoitecer. 

Ao mesmo tempo em que deve caminhar mais rápido com a entrega dos resultados, Macri precisa ser mais hábil no discurso. Pedir a aposentados que pensem a longo prazo parece piada de mau gosto. E pedir que os argentinos, em geral, sejam pacientes, é mostrar que não conhece a natureza de seus compatriotas.