A cara-de-pau de presidentes que violam a lei em nome de seus próprios direitos humanos

Sylvia Colombo
Ruas de Tegucigalpa, em Honduras, tomadas por protestos (Foto AP)

Estamos assistindo, em Honduras, a uma das mais sérias crises desde a deposição, por meio de um golpe de Estado, do então presidente Manuel Zelaya (2006-2009). Uma semana depois da eleição presidencial, ainda não se sabe quem ganhou. Durante a semana, assistimos aos dois principais candidatos se declararem vitoriosos, ao Tribunal Supremo Eleitoral, de forte vínculo com o Executivo, sofrer “apagões” e “quedas de sistema” sempre que a oposição mostrava vantagem, e, depois, um resultado parcial que virava o jogo, dando ao atual presidente conservador, Juan Orlando Hernández, uma ligeira vantagem _levando, assim, centenas de pessoas às ruas em protesto. Uma nova apuração teve início. Há uma semana que este país centro-americano vive um limbo de violência e indecisão. Resultado, entre outras coisas, de sua fragilidade institucional, nunca consolidada em uma região tomada por conflitos e guerras civis, altos índices de corrupção e pobreza (65% da população) e uma das taxas de homicídio comparáveis às de regiões em guerra, por conta do embate entre as “maras” _facções criminosas formadas por deportados dos EUA.

Tudo isso já seria trágico o suficiente se não estivéssemos assistindo, também, ao uso cada vez mais comum de certos presidentes, de esquerda e de direita, de uma leitura um tanto quanto distorcida de uma cláusula de um reconhecido tratado internacional. Tanto o atual presidente boliviano, o esquerdista Evo Morales, no poder há mais de 10 anos, como Hernández, decidiram o usar o recurso. A estratégia é simples. Existe uma disposição da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José), de 1969, que diz que os direitos políticos de um indivíduo só podem ser retirados segundo uma lista restrita de hipóteses. Essa lista, porém, não inclui os limites às reeleições, que são definidos apenas pela Constituição de cada país. Como bem observou o diretor do Human Rights Watch, José Miguel Vivanco, “trata-se de de um dispositivo que garante que nenhum perseguido político seja impedido de concorrer em eleições livres. A disposição foi concebida para impedir que governos autoritários se aferrem ao poder afastando caprichosamente a candidatos opositores (como vem fazendo a Venezuela ao retirar direitos políticos a Henrique Capriles, por exemplo), e não para bloquear os limites constitucionais às reeleições que precisamente buscam evitar o surgimento de caudilhos”, escreveu no “New York Times”.

Pois Hernández e Morales decidiram reinterpretar a cláusula a seu modo. Em vez de servir para proteger inimigos políticos de governos, garantindo-lhe acesso às urnas, vem se prestando a estes mandatários para driblar as Constituições de seus países. No caso de Evo, na Carta que ele mesmo promulgou, em 2009, há um limite de apenas uma reeleição. Para concorrer a seu terceiro mandato, em 2014, Morales pediu que a Corte Suprema interpretasse que, como seu primeiro mandato havia começado com a Constituição anterior, a primeira eleição que valia mesmo era a de 2009. Assim, conseguiu concorrer a um terceiro período. No ano passado, tentou por meio de referendo mudar esse artigo para poder disputar o quarto mandato, foi derrotado na consulta popular. Depois de meses maquinando com sua equipe uma nova estratégia, saiu-se com essa. Alegou à Justiça que se não fosse permitido que concorresse, estaria tendo um direito humano seu violado. Assim, conseguiu a aprovação e irá disputar um quarto período em 2019.

Hernández fez igualzinho. A reeleição tampouco está prevista na lei hondurenha. Mas, com uma Justiça eleitoral altamente vinculada ao Executivo, pediu aos juízes que considerassem que o impedimento de sua candidatura era uma “violação a um direito humano” dele, Hernández, o de participar da política de seu país. Assim foi que se tornou candidato, então já semeando as primeiras raízes do conflito que agora vemos explodir nas ruas. Ao ver as imagens violentas nas principais cidades hondurenhas e a instabilidade política que tal atitude desencadeou, Hernández parece mais preocupado com o seu direito humano do que o dos 9 milhões de hondurenhos que pretende seguir governando.

Seria bom se algum organismo internacional alertasse que o uso dessa cláusula não se designa a proteger caudilhos que pretendem estar no cargo indefinidamente, e sim completamente o oposto. Antes que se abra um presidente perigoso na região.