Voos da morte e torturas recebem condenação final na Argentina

Sylvia Colombo
Corpos reencontrados de pessoas jogadas no Río da Prata na ditadura (Foto Arquivo)

O último capítulo de um dos mais importantes julgamentos dos crimes da repressão cometidos durante a última ditadura militar argentina (1976-1983) ocorreu na quarta-feira (29), condenando 29 repressores a prisão perpetua, considerados culpados por crimes de lesa humanidade.

Alguns deles, como Jorge “El Tigre” Acosta e Alfredo Astiz, que comandavam as torturas e assassinatos na ESMA (Escola Mecânica da Armada), o principal centro clandestino de detenção, onde estiveram mais de 700 presos políticos, já tinham sido sentenciados por outros abusos.

Repressores aguardam sua sentença, em tribunal de Buenos Aires (Foto Clarín)

A novidade desta chamada “megacausa” (por juntar vários delitos e acusados, além de averiguar os vínculos e cadeias hierárquicas que possibilitavam os crimes) foi a condenação, pela primeira vez, de responsáveis pela logística operacional dos chamados “voos da morte”, em que opositores ao regime eram jogados, depois de terem sido sedados e com pesos amarrados aos pés que os impedissem de voltar à superfície, nas profundezas do Rio da Prata.

Os voos se realizavam durante a noite, transportando os que iam morrer desde a ESMA até o Aeroparque. Daí eram embarcados em aeronaves oficiais que os iam despejando no leito do rio, voltando ao aeroporto antes do amanhecer.

Não apenas montoneros e membros da resistência foram mortos assim. Também algumas mães de desaparecidos e freiras, que se reuniam numa Igreja para organizar atos e trocar informações, foram sequestradas e jogadas no rio. Ao longo das últimas décadas, alguns pedaços desses corpos começaram a reaparecer, em praias do Uruguai ou na costa argentina.

“Além de pedirmos Justiça e condenações duras aos responsáveis por esses crimes, para nós é importante ter acesso ao material recolhido durante todo o processo, para entender melhor o que ocorreu e poder dar mais respostas aos familiares”, disse à Folha Luz Palmás Zaldua, advogada do CELS (Centro de Estudos Legais e Sociais).

Os julgamentos dos crimes da ditadura argentina passaram por alguns vai-e-vens desde a redemocratização do país, em 1983. Primeiro, realizou-se o famoso “Juicio a las Juntas”, ainda durante o governo de Raúl Alfonsín (1983-1989). Amplos, esses julgamentos condenaram chefes da repressão e da guerrilha. O próprio Alfonsín, porém, sob pressão, promulgou as leis de Obediência Devida e de Ponto Final, que eximiu de culpa os que cometeram atos repressivos obedecendo ordens. Já nos anos Menem (1989-1999), com um discurso de reconciliação nacional, o peronista resolveu indultar a todos.

Os julgamentos voltaram a ocorrer apenas em 2003, quando outro peronista, Néstor Kirchner (2003-2007), revogou indultos e deu carta branca à Justiça para voltar a julgar os crimes do período. A lei argentina usa interpretação do Estatuto de Roma de que crimes de lesa humanidade são aqueles cometidos pelo Estado, e portanto não prescrevem, podendo ser julgados a qualquer momento. Já os cometidos pelos civis _no caso os montoneros ou os membros do ERP (Exército Revolucionário do Povo)_ já teriam caducado e não teriam como voltar aos tribunais.

Dessa forma, durante todo o kirchnerismo (2003-2015) realizaram-se mais de 700 julgamentos de repressores. A nova administração, do presidente Mauricio Macri, insinuou que poderia haver uma desaceleração dos processos e chegou a receber apoio de advogados de repressores que lhe pediam um indulto aos condenados que já estão em idade avançada ou muito doentes.

Ao contrário do que se esperava, e muito por conta da pressão exercida pelas organizações de direitos humanos, Macri resolveu não comprar essa briga. Não colocou barreiras para o seguimento dos julgamentos que estavam em andamento e também não deu mais ouvidos a pedidos de anistia.

Agora que a maioria dos crimes importantes já foi julgada, o que seria benvindo seria uma organização do arquivo geral de todos os depoimentos. A partir desse acervo, que historiadores se debruçassem sobre eles movidos por interesse acadêmico e não ideológico. Tal esforço permitiria que se conhecesse e se divulgasse a verdade sobre a violência daqueles anos, dando nomes aos bois e contabilizando da forma mais científica e menos enviezada possível, afinal, quantos argentinos perderam a vida nessa fase terrível de sua história.