“México precisa resgatar tradição de debater seus problemas”, Guadalupe Nettel
O México foi um dos principais temas debatidos no último Festival Gabo, promovido pela Fundação Nuevo Periodismo, em Medellín, na semana passada. Houve vários momentos em que suas tragédias contemporâneas comoveram a audiência. Um deles foi quando o coletivo Pie de Página subiu ao palco para receber o prêmio pelo trabalho “Buscadores en un país de desaparecidos”, que há anos acompanha familiares das mais de 80 mil pessoas que sumiram desde o início da guerra ao narcotráfico, em 2006. Outro, quando Jorge Ramos, apresentador da Univisión, falou do difícil momento da relação entre seu dois países _o jornalista é mexicano-americano_ desde que Donald Trump assumiu nos EUA com um discurso anti-mexicano.
Mas o momento mais dramático ocorreu na mesa sobre os assassinatos de jornalistas no interior do país, vítimas da corrupção local e do domínio dos cartéis. Já são 36 mortes desde o início do governo Enrique Peña Nieto, e todos os homicídios estão impunes. Na mesa, estava Ismael Bojórquez, diretor do semanário “Ríodoce”, colega de Javier Valdez, o nome mais destacado entre os assassinados deste ano.
Bojórquez fez uma autocrítica, dizendo que seu jornal talvez tivesse ido longe demais nas investigações sobre a disputa dos cartéis, e que isso poderia ter levado à morte de Valdez. Levou muitos às lágrimas, especialmente quando colegas como o também mexicano Guillermo Osorno e a chilena Mónica González o lembraram de que essa autocrítica tinha de ser feita antes pelo governo mexicano. Bojórquez afirmou que o “Ríodoce” não mudaria de linha editorial nem se amedrontaria após a tragédia e novas ameaças.
Na seção mais literária, o festival contou com a presença da mexicana Guadalupe Nettel, 44, que participou de uma das mesas sobre Gabriel García Márquez (1927-2014), lendo um lindo texto em que contou ter se identificado com a história de Eréndira, personagem do autor, que era explorada pela avó (“La Increíble y Triste Historia de la Cándida Eréndira y de Su Abuela Desalmada). Nettel se projetou com o livro “O Corpo em que Nasci” (Rocco) e ganhou o prêmio Herralde com seu romance mais recente, “Después del Invierno” (sem previsão de sair no Brasil), de 2014.
Leia, abaixo, a entrevista que Nettel concedeu durante o evento.
Folha – Você está assumindo a Revista da Universidade, uma das mais tradicionais do México, que circula há 87 anos. Quais os planos?
Guadalupe Nettel – A Revista estava muito vinculada a um grupo de escritores relacionados à Unam (Universidad Nacional Autónoma do México) e pouco dialogava com o que acontecia fora de seu mundo. Sou a segunda diretora mulher a assumir nesses mais de 80 anos da publicação. Quero fazer uma mudança em sua linha editorial. Primeiro, que deixe de ser muito literária e seja mais interdisciplinar. Depois, trazer mais gente de fora. Ter, ainda, por volta de 40% de produção de gente da universidade, mas abrir os outros 60% para gente de fora.
Mas o mais importante, creio, é transforma-la numa revista que proponha debates como se fazia antigamente no México. Estamos num momento muito complicado. Até os anos 1990, havia uma tradição de as publicações promoverem discussões sobre os problemas do país. Depois não houve mais isso. E é muito necessário, por conta do momento político interno, a relação com os EUA, as mudanças na sociedade. E, também, na literatura que se está produzindo.
Folha – Não por coincidência, um personagem que você estudou e escreveu a respeito, Octavio Paz (1914-1998), era um promotor do debate por meio das revistas.
Nettel – Justamente. Houve um tempo em que as revistas “Vuelta”, que ele dirigia, e a “Nexo”, de Héctor Aguilar Camín, mais ligada ao PRI (Partido Revolucionário Institucional), estavam no centro da discussão política, sem abandonar as questões literárias. Quando Octavio Paz morreu, as revistas deixaram de exercer esse papel, se esvaziaram, e seguiu-se um período em que as ideias políticas não são mais o foco de meios literários. Essa era uma das coisas que eu gostava de Paz, e creio que isso agora serve como inspiração.
Folha – E porque você acha que o jornalismo se intimidou, até mesmo o jornalismo cultural, como você descreve?
Nettel – Acho que faz parte de um contexto. Até os anos 1990, os jornalistas não eram um grupo tão vulnerável como são agora. Hoje, junto com os ativistas sociais, são os profissionais que são mortos o tempo todo. Os do interior, sobretudo, porque estão mais próximos ao perigo real, os cartéis de narco e os governos regionais que eles manipulam por financiar suas campanhas.
O que acho mais estranho e queria encontrar uma resposta é por que o narco se importa tanto com o que se diz sobre ele, se vem atuando com total impunidade no interior? São donos de tudo, podem entrar nos restaurantes, levar meninas sequestradas, por meses, ou para sempre. E o jornalista que apontar para isso é morto, sem que esse homicídio seja investigado.
Folha – Li numa entrevista recente que você tem ressalvas à onda de “narco-literatura” que domina a ficção mexicana hoje.
Nettel – Sim, era uma crítica com relação às pessoas que defendem a literatura comprometida e que pensam que a literatura tem de servir a uma causa. E que, se o problema do México é o narco, então todos os escritores têm a obrigação moral de escrever sobre o narco. Para mim não deveria ser assim. Se alguém pensa que o narco deve ser o assunto de sua ficção, está bem. Mas não estou de acordo com que todos abracem isso como uma obrigação política, porque senão a literatura se transforma em algo quase tão totalitário como qualquer ditadura. Começam a se falar de coisas de que se pode falar e de coisas de que não se pode falar. E acredito que o escritor deva escrever sobre aquilo que queira. Senão a literatura sai ruim.
Folha – Nos anos 1990, um grupo de escritores mexicanos, como Jorge Volpi, Ignacio Padilla (1968-2016) e outros, pregavam um pouco isso, que a literatura deixasse de falar de temas sociais, como nos anos do “boom latino-americano”. Estamos voltando a esse ambiente?
Nettel – Concordo que nos anos 1990 se rompeu com essa ideia de falar do social na literatura. Mas acho difícil pensar em movimentos. Na verdade, me dá tristeza pensar que a literatura seja algo que vá respondendo à realidade na forma de movimentos, como se estivesse seguindo pautas e modas. Volpi e Padilla eram parte de um grupo de amigos que estudaram juntos desde o colégio, e o que inventaram, a “geração crack”, era menos um movimento do que a defesa de que pudessem escrever sobre coisas de que gostavam, como a ciência, a arte, a história europeia. Vejo menos como um movimento e mais como um projeto de um grupo de amigos.
Folha – O desterro é um dos temas presentes na tua literatura, afinal, você cresceu em parte no México e em parte na França. Como isso segue impactando nos seus escritos?
Nettel – Esse é um tema que me marcou muito e de que trato em “O Corpo em que Nasci”. Quando era criança, no México, convivi na escola com 90% dos colegas sendo estrangeiros, filhos de pais que haviam sido torturados ou perseguidos pelas ditaduras sul-americanas. Crescer com crianças com uma história assim te impacta muito. Depois, quando tinha 11 anos e fui viver em Paris, convivia com imigrantes que vinham, principalmente, da África do Norte. Eram meus vizinhos e colegas. E eu experimentei pela primeira vez como era ser estrangeira, ainda tão jovem, e falar um idioma que os outros não falavam. No meu bairro, quase que se falava mais árabe do que francês, e isso me fez sentir como uma “outsider”. Por outro lado, fez com que me interessasse desde cedo em conhecer outras culturas, por meio da literatura. Então passei a ler de tudo, autores latino-americanos, mas também coreanos, turcos, japoneses.
Folha – Queria saber se você vem acompanhando a crise dos refugiados na Europa, e se vê a questão hoje mais ou menos grave do que na época em que viveu em Paris.
Nettel – Hoje sinto que a situação é mais grave do que na minha época, especialmente no caso dos refugiados. Porque quando eu estava lá, lembro que havia uma ilusão de integração, um consenso de que essas crianças de fora que iam à escola comigo iam depois integrar-se à sociedade francesa. Mas logo ficou claro que isso não ia ser assim. E as próprias escolas perceberam que não ia haver espaço para elas, e começaram a haver políticas para encaminha-las para formação de operários de fábricas, para profissões mais técnicas. Foi ficando claro que não teriam acesso a um estudo mais aprofundado.
E as consequências dessas políticas são vistas hoje, quando não há integração nenhuma, e existe um racismo que cresce de modo galopante. Na atual sociedade francesa, você não encontra um emprego bom se tiver um apelido árabe. Por isso eu entendo que esses jovens tenham caminhado para a violência. Isso ocorreu porque não lhes deram muitas opções.
Agora, depois dos atentados, vejo ao mesmo tempo que parte dos parisienses vem sendo mais aberta e mais generosa com os estrangeiros.
Folha – E você tem conseguido conciliar a edição da revista com a escritura?
Nettel – Está complicado, porque a revista toma bastante tempo. Mas por um lado acho necessário fazer isso agora porque o México está precisando de uma revista como a que queremos fazer. E, enquanto isso, escrevo contos, que são mais ágeis, posso me concentrar neles, e depois voltar para a edição.
Folha – No ano que vem haverá eleições no México. Como vê o cenário político?
Nettel – É de total incerteza. Todas as pesquisas e prognósticos dizem que vai ganhar (o esquerdista) Andrés Manuel Lopez Obrador. Mas eu penso que vai haver uma jogada de último momento a favor do PRI. Não será a primeira vez e no México a democracia não é algo limpo. Sempre houve manipulação dos votos e agora há também uma manipulação a partir das redes sociais. Eu inclusive me pergunto se esse rumor generalizado de que vai ganhar Lopez Obrador não está sendo estimulado para que as pessoas se assustem e passem a apoiar uma solução mais à direita.
Folha – Há tempos que deveria haver segundo turno, não? Porque os presidentes vêm ganhando sem ter uma maioria que garanta sua legitimidade.
Nettel – O fato de não haver segundo turno é mesmo muito ruim. Porque segundo turno gera debate, as pessoas têm chance de amadurecer o voto, e quem ganha tem uma base de apoio mais legítima. Também não sei se deveríamos ter mandatos de seis anos. É muito tempo. Tenho certeza de que se não tivéssemos mandatos de seis anos e sim reeleição (não existe no México), Peña Nieto não teria ganhado um segundo mandato.
A jornalista viajou a convite da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano