Ayotzinapa, 3 anos e a agonia da falta de respostas

Sylvia Colombo
Sobrinha de um dos estudantes mortos, em sua casa, em El Pericón, no Estado de Guerrero (Foto Sylvia Colombo)

Neste 26 de setembro completam-se três anos da desaparição dos 43 estudantes de Ayotzinapa, no Estado de Guerrero (México), o caso de violência que ficará marcado como o mais grave e com mais consequências políticas para a gestão de Enrique Peña Nieto, do PRI, que termina no ano que vem.

Alguns meses depois da tragédia, visitei, para uma reportagem para a Ilustríssima, a casa de um dos dois únicos estudantes cujos restos mortais foram identificados através de estudo de DNA realizado por peritos austríacos. Seu nome era Alexander Mora Venancio, tinha 21 anos. Estava terminando o curso no colégio Rafael Burgos, de Ayotzinapa, e preparava-se para ser professor.

Vivia no vilarejo de El Pericón, uma aldeia de chão de terra batida no interior do Estado em que todos se conhecem e rezam seus mortos juntos, em longas sessões de oração. A casa da família consistia numa só peça. Ali dormiam o pai e o irmão de Alexander, com a mulher e os dois filhos deste. Apesar de o espaço ser pequeno, a família encontrou uma maneira de montar um altar dedicado ao estudante. Bem ao estilo mexicano, ali estavam fotos do rapaz de semblante sério, em roupas escolares ou usando camisetas de futebol. Era começo de noite, e as velas estavam acesas, iluminando imagens de santos, rosários e as mensagens escritas à mão pelos colegas. Quando terminei de fazer as entrevistas, a cunhada de Alexander me disse: “Por que não conversa com a avó dele, doña Brígida?”. Eu disse que gostaria muito e ela, então, me levou para a casa que ficava na parte de trás. Ali vivia essa senhora de então 83 anos. Apenas quando pus os pés em seu quarto, onde ela debulhava milho com o olhar perdido, a cunhada me alertou: “nós ainda não contamos para ela que Alexander está morto”. Fiquei uns segundos sem ação, e comecei, então, a perguntar a doña Brígida sobre sua vida, uma vez que não podia mencionar a tragédia. Ela, então, me contou como era Guerrero no passado, quando ela era menina e ali chegou caminhando, pois não havia estradas. Tinha estado só uma vez na Cidade do México, e contou que preferia a vida do campo. Falava de Alexander com carinho, esperando sua próxima visita, que ela imaginava que ia ser logo porque, afinal, ele já estava demorando a aparecer. Uma bola de angústia se formou na minha garganta. E a partir daí eu já não consegui perguntar mais nada.

Não sei se doña Brígida ainda está viva, se alguém por fim lhe contou que seu neto não voltará jamais, ou que reação teve ao receber a notícia.

O fato é que a desaparição dos rapazes de Ayotzinapa hoje assombra tanto ou mais do que naquela época, não apenas pelo tamanho da tragédia, como por conta das perguntas não respondidas e das explicações desencontradas que foram surgindo e se acumulando desde então.

O que se sabe de concreto é que, naquele dia, 100 alunos da escola rural Rafael Burgos tinham se reunido e subido em três ônibus para ir à cidade de Iguala. Dali, buscariam como ir à Cidade do México, onde a ideia era participar da homenagem aos mortos do Massacre de Tlatelolco, ocorrido em 1968. Os ônibus foram cercados por forças de segurança, houve um tiroteio e seis mortes. Os meninos foram levados dali e nunca mais se soube deles.

A versão oficial e a principal linha de investigação aponta somente para as autoridades e criminosos locais. O prefeito, irritado porque a parada dos estudantes em Iguala teria como objetivo atrapalhar o ato de lançamento da candidatura de sua mulher, havia pedido à polícia local que os contivesse. Ainda segundo esta versão, os policiais teriam capturado o grupo e os entregado a um cartel, o Guerreros Unidos. Estes teriam matado os garotos, e depois queimado seus corpos num lixão.

Várias coisas, porém, seguem sem encaixar. Ou simplesmente são de cair o queixo se forem verdade. A que ponto se chegou, no interior do México, em que um prefeito pede que a polícia sequestre um grupo de estudantes só porque estes atrapalhariam um ato político? Que polícia obedece a essa ordem, indo ao extremo de entregar os meninos a um cartel da droga? E a que nível de crueldade chegaram essas facções, capazes de realizar essa matança e depois se desfazer assim dos corpos?

O que complica as coisas para o governo federal é que há testemunhas que dizem ter visto soldados do Exército participando da ação. Isso colocaria em dúvida a tese de que tudo ocorreu apenas localmente, sob a batuta do prefeito, e que nenhuma autoridade acima dele teria tomado conhecimento. Outra razão que faz com que familiares e grupos de direitos humanos estejam ainda mais furiosos com Peña Nieto é que a perícia encomendada pelo governo e sua versão oficial dos fatos foi depois desacreditada por um grupo de peritos internacionais, sob monitoria da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

A gravidade deste caso, entre tantos enfrentamentos violentos da guerra do Estado mexicano ao narcotráfico, reside naquilo que expõe: o fato de que, no interior do país, há um vínculo fortíssimo entre autoridades regionais, cartéis e forças de segurança. Não é de hoje que se acumulam acusações de que os cartéis financiam boa parte das campanhas de prefeitos e governadores.

Ayotzinapa mostrou como pode ser sangrento o desenlace dessa terrível associação.

Muito antes da tragédia, já se sabia que o sul do México, assolado pela pobreza, vinha vendo os casos de violência aumentarem. Isso por conta da expansão das plantações ilegais de papoula para produzir heroína, enviada pelos cartéis locais, como os Guerreiros Unidos, aos EUA. O contexto já era bem conhecido, pois o “boom” da heroína no Norte só vem aumentando na última década, penalizando os Estados pobres do sul do México. Ainda assim, o governo de Peña Nieto não ofereceu à região, nem antes e nem depois, uma proposta de investimento em outras áreas de produção, nem de incentivo à economia e de melhorias na educação local. Nem mesmo encarou, em seus seis anos de gestão, um debate sério sobre regulamentação das drogas para combater o narcotráfico.

Não há nada para comemorar nesse terceiro aniversário da tragédia de Ayotzinapa. Apenas o fato de ter despertado consciências dentro e fora do país e de haver mais cobrança com relação às autoridades. Mas só isso não basta, pois os números de homicídios no México relacionados ao crime organizado aumentaram em 16% neste ano com relação ao anterior.

Por ora, a tragédia de doña Brígida, infelizmente, está fadada a repetir-se em outras famílias da região.