Anita, a montonera, uma história difícil de contar

Sylvia Colombo
A montonera Ana María González, que matou o chefe da Polícia Militar durante a ditadura (Foto Divulgação)

O historiador argentino Federico Lorenz acaba de lançar “Cenizas que te Rodearon Al Caer – Vidas y Muertes de Ana María González, la Montonera que Mató al Jefe de la Policía Federal” (Sudamericana). Apesar de se tratar de um episódio importante para entender os anos 1970 na Argentina, essa história até hoje não tinha sido bem contada. A razão é complexa. Para peronistas e a intelectualidade de esquerda, era complicado demais justificar a atitude da jovem guerrilheira Anita, que aos 20 anos de idade colocou uma bomba debaixo da cama de um dos principais comandantes da repressão, matando-o de pijama, enquanto dormia.

Por outro lado, como conta Lorenz, lhe parecia injusto que a história de Anita tenha sido sempre relatada apenas por seus inimigos, de modo parcial e sem a preocupação de contextualizar e entender as motivações da garota, naquele momento violento da história argentina.

O resultado é uma narrativa intensa, comovente, de suspense e horror, que humaniza Anita, mas não a justifica. Mais do que isso, mostra as razões de ter sido criado, na Argentina, um ambiente de agressividade tão grande que envolveu tanto os civis que se levantaram contra a ditadura militar (1976-1983) como despertou a máquina de repressão brutal e genocida que o Estado pôs em vigor.

Entrevistando colegas de escola e de militância, mas sem ter podido falar com os familiares, que se recusam a comentar publicamente a história de Anita, Lorenz trata de sua formação política e de sua entrada na guerrilha urbana montoneros. O foco da pesquisa está entre os anos de 1973 e 1976. É um período crucial da história argentina e pouco estudado, uma espécie de tabu nacional porque, mesmo em tempos de democracia, naqueles anos o país já vivia o enfrentamento entre forças da repressão estatais e militantes civis armados.

Quando a ditadura começou, Anita, uma menina de classe média, ia a um colégio numa região nobre da cidade, o bairro de San Isidro, onde estudava para o magistério. Notou que estava na mesma classe que Chela, filha de Cesáreo Cardozo, nada menos do que o chefe da Polícia Federal e homem de confiança do então ditador Jorge Rafael Videla (1925-2013). A garota, então, informou seus superiores dentro da organização guerrilheira, e estes lhe pediram que se aproximasse de Chela, virando sua amiga e ganhando a confiança da família, que passou a frequentar. O plano que veio na sequência foi armado meticulosamente pelo grupo. A execução, porém, foi levada adiante apenas pela corajosa Anita.

Armaram uma bomba caseira, associada a um relógio, que Anita levou na bolsa para a escola naquele dia 17 de junho. Na saída, a menina saiu acompanhada de Chela e escoltada pelos guardas que protegiam a família Cardozo. A ideia era que ambas fizessem a lição de casa juntas. Num determinado momento, Anita disse que tinha brigado com o namorado e que por isso queria fazer uma ligação privada, de preferência do aparelho que estava no quarto dos pais de Chela, que permitiu sem desconfiar de nada.

Uma vez ali, Anita posicionou a bomba debaixo da cama matrimonial. Depois, hesitou, achando que a tinha deixado num local próximo de onde o oficial teria os pés, e podia, por conta disso, não ser fatal. Voltou, então, ao quarto e reposicionou a bomba, desta vez num local que corresponderia ao ponto em que ele descansaria a cabeça. Voltando a sala, disse que não estava passando bem e que iria embora. Horas depois, à 1.30 da madrugada do dia 18, a bomba explodiu matando Cardozo e destroçando seu cadáver. A esposa do oficial, para sua sorte, não se encontrava no quarto, pois fazia companhia à mãe, que visitava a família. Chela não teve dúvidas de que se tratava de coisa de Anita, porque conhecia suas opiniões políticas e algo de sua militância. Testemunhas contaram a Lorenz que ela gritava, já do lado de fora do apartamento, que a amiga a havia traído.

O episódio foi uma espécie de divisor de águas na história da ditadura, e acabou virando um tiro nos pés para os montoneros. Para o regime militar, que já vinha realizando prisões arbitrárias, torturando e desaparecendo gente, a atitude da jovem montonera ajudou a justificar a brutalidade do aparato repressivo. Levou, também, a sociedade argentina a aceitar e corroborar o regime, que estaria “colocando ordem” na situação do país.

Anita foi caçada por meses, até ser atingida num tiroteio com oficiais do Exército, no ano seguinte. Ferida gravemente, foi levada a um dos centros de reunião dos montoneros, que duvidavam entre leva-la a um hospital ou não. Suas últimas horas foram reconstruídas a partir do relato do namorado, que morreria depois no centro de detenção clandestino da ESMA (Escola Superior da Marinha), mas não sem antes relatar a sobreviventes os detalhes daquela noite. Segundo o que Lorenz ouviu dessas pessoas, Anita teria se recusado a ir para um hospital porque, se ali morresse, seu corpo “viraria um troféu” para os militares. Os colegas concordaram, e depois que ela agonizou, queimaram a casa com o corpo da montonera dentro.

A história dá para um filme, apesar de infelizmente se tratar de um episódio da pura realidade de um pesadelo coletivo. Leva a uma profunda reflexão sobre esse período terrível que a Argentina atravessou. O título do livro, tirado de um poema de Juan Gelman (1930-2014), se refere justamente às palpáveis sequelas que ainda hoje existem na sociedade e que são resultado de comportamentos como os de Anita e das ações brutais do Estado a quem ela combatia e que reagiu de forma ainda mais sangrenta.