Defensor dos direitos humanos, um dos mais antigos jornais da Argentina fecha as portas

Sylvia Colombo
Uma das capas do “Herald” durante a ditadura (Foto Reprodução)

Criado em 1876 por um editor escocês, o “Buenos Aires Herald”, um dos mais antigos da Argentina, deixou de circular na última segunda-feira (31). Com apenas uma página diária a princípio, mas logo ganhando seções e corpo, o “Herald”, em seus inícios, tinha apenas a intenção de informar a comunidade britânica sobre assuntos de seu interesse. Esta era formada, então, por comerciantes e industriais recém-instalados e pelos construtores das ferrovias argentinas.

Com o tempo, porém, o jornal foi ganhando peso político, primeiro ao se posicionar contra o nazismo nos anos 30 e 40, quando outra publicação local, também em inglês, defendeu os alemães durante a Segunda Guerra (1939-1945).

O momento de seu apogeu, porém, viria algumas décadas depois. Sob a condução do valente editor Robert Cox, 83, que hoje vive entre os EUA e Buenos Aires, a publicação decidiu que o “Herald” não se amedrontaria diante da pressão dos generais da ditadura militar (1976-1983) e publicaria todos os casos de desaparições de que fosse informado. Cox conta hoje com orgulho que a publicação conseguiu salvar várias vidas, com a simples publicação do nome de pessoas presas de modo inesperado pelas chamadas “forças de tarefa”.

Quando o grupo de mães que ficaria conhecido mais tarde como Mães da Praça de Maio bateu às portas do “Herald”, depois de não encontrarem ouvidos nos jornais tradicionais, este pequeno diário (que nunca ultrapassou a tiragem de 10 mil cópias ao dia) se transformou na via preferencial para divulgar a desaparição de seus filhos. Nem todos voltaram, obviamente, mas a existência do jornal _com donos, editores e jornalistas estrangeiros e por isso mais independente_ passou a ser um problema para o regime, que via parte de seus crimes expostos, ainda que por uma publicação de alcance limitado.

Num jantar entre editores e intelectuais com o então ditador Jorge Rafael Videla (1925-2013), Cox recebeu uma espécie de alfinetada, o de que não estaria “entendendo” o momento delicado pelo qual passava o governo e no qual “certas medidas” (os sequestros e os campos clandestinos de tortura e assassinato) eram necessárias. O editor não se intimidou, e respondeu diretamente ao general Videla, dizendo que as desaparições seguiam ocorrendo e que seu dever era continuar informando.

A pressão aumentou, e Cox foi para o auto-exilio por um tempo, mas o jornal continuou reportando a repressão cometida pelo Estado. Era conhecido entre profissionais de outros meios como um jornal valente, enquanto muitos praticavam a autocensura e não resistiam à pressão. Quando alguém os procurava para denunciar uma desaparição, costumava-se dizer: “leve para aqueles britânicos loucos, que eles publicam tudo”.

Depois da volta da democracia, se consolidou como uma referência para as organizações de direitos humanos e sua fama na defesa dos valores democráticos se consolidou.

Na Guerra das Malvinas, o jornal tomou o lado britânico (Foto Reprodução)

Uma época menos nobre, porém, começou em 2007, quando a publicação foi comprada por um poderoso empresário local, Cristóbal Lopez, ligado ao kirchnerismo e dono de outros meios alinhados ao governo. Logo o “Herald” estava também sendo parcial e atentando contra seus princípios de independência jornalística.

Durante a gestão Cristina Kirchner (2007-2015) foi dos que recebeu verba publicitária preferencial por manter essa linha pró-governo. Mas, desde que esse jogo virou, com a chegada de Mauricio Macri _um desafeto de Cristóbal Lopez_ ao poder, a agonia do “Herald” se anunciava, uma vez que foi perdendo essa fonte de recursos estatais.

Primeiro, deixou de ser uma publicação diária para ser só semanal, colocando o foco em sua versão digital. Muitos funcionários e jornalistas foram demitidos.

Na última segunda-feira (31) anunciou que fecharia as atividades de uma vez.

Seus “obituários” publicados ao longo da semana, na Argentina e no Reino Unido, acertadamente puseram ênfase nos momentos de coragem da publicação, nos anos 1970 e 1980, e não nos tempos recentes em que se resignou a dar voz a um determinado governo e abrindo mão de seus princípios, selando assim este triste fim.