Em Mendoza, uma chave para entender a Argentina do séc. 19
Enquanto o desempenho escolar argentino teve uma pronunciada queda nos últimos tempos, segundo o informe PISA e, neste ano, professores da rede estatal fizeram uma greve por aumento salarial que, em algumas províncias, durou mais de três meses, um achado aqui na cidade de Mendoza, na última semana, recordou os tempos mais áureos da educação argentina.
Enquanto num canto da cidade os presidentes do Mercosul se reuniam na Cúpula do bloco, os jornais mendocinos e historiadores do país repercutiam a descoberta de um Livro de Atas do século 19 de uma professora norte-americana que viera ao país a convite do então governo argentino, empenhado num plano de longo alcance e de longo prazo de popularizar a educação por todo o país.
Tal projeto foi um sucesso e fez da Argentina um dos países latino-americanos mais bem formados e mais letrados do continente por muitas décadas. A deterioração começaria após a crise de 2000-2001, e a ligeira recuperação, uma boa notícia, ainda é fato recente. Porém, mesmo apesar das crises financeiras que degradaram o plano original, ainda hoje os níveis de leitura argentinos ganham de vários de seus vizinhos. Parte da explicação vem deste projeto.
Mas vamos ao tal livro recém-encontrado e sua história. O diário de instruções pertenceu a Mary Olive Morse, que por mais de 20 anos foi diretora da Escola Normal de Maestras Tomas Godoy Cruz de Mendoza. O objetivo da instituição era ensinar as professoras locais a alfabetizar e a educar as crianças da região. Na época e ainda hoje, Mendoza era a principal cidade da zona de Cuyo, que inclui as províncias de San Luis, San Juan e Mendoza, e concentrava, portanto, as melhores instituições educativas da região.
Do próprio punho, Morse anotou as regras da instituição e deixava registrado como deveria ser a conduta das professoras, que estavam educando futuros professores. Dizia: “É preciso estudar sistematicamente algum caso durante todo o ano, ler bons livros, revistas e jornais de maneira contínua. Fazer uma preparação com consciência de cada aula, tratar as alunas como amigas, levar à classe bom humor e nunca os desgostos que vêm de fora. Cuidar de usar a voz doce, mas que demonstre autoridade.”
As dicas se estendem a várias áreas da educação, falam de responsabilidade, disciplina, das técnicas usadas nos EUA e que eram então implementadas aqui, assim como a manutenção da limpeza e dos horários. Estão ali também telegramas e correspondência de Morse com instituições de seu país e com as autoridades argentinas, reportando como se desenvolviam as coisas por aqui.
Morse foi a última das 65 professoras norte-americanas trazidas para cá na década de 1860 a morrer. Até hoje, a Argentina não reconheceu de forma devida sua importância em revolucionar a educação do país naquele princípio republicano, colocando-o adiante de outros da região por muitos anos. Algumas publicações acadêmicas e poucos livros de alcance mais geral foram editados, mas o cidadão comum pouco conhece seu impacto na formação do país de hoje.
As professoras vieram durante a presidência de Domingo Faustino Sarmiento (1868-1874), também autor do célebre ensaio “Facundo” (1845). Em sua gestão, foram fundadas 800 colégios de primeiras letras, e a população escolar em geral foi de 30 mil a 110 mil alunos, em apenas seis anos.
O problema de base era imenso, não bastava construir as escolas, era essencial formar mão-de-obra qualificada para atende-las. Sarmiento, que em uma viagem anterior aos EUA tinha ficado impressionado com o sistema educativo de lá e feito amizade com professores e formadores pedagógicos, voltou então ao país do norte para tentar convencer o máximo de professoras a virem participar de seu projeto. Sua meta era ambiciosa, trazer mais de mil. Conseguiu 65. Dezesseis delas ficaram em Cuyo, enquanto o resto foi lecionar em Buenos Aires e em outras províncias.
Sua confiança em um planejamento educacional de longo prazo, que era comum também a outros pensadores daqueles meados e fins do século 19 nos falam de uma outra Argentina, uma Argentina de políticos que olhavam para o futuro sem se preocupar com a próxima eleição e nem com refundar a nação a cada gestão presidencial, como ocorre hoje.
As professoras trazidas dos EUA para formar professoras paras as crianças argentinas se enquadram nessa visão de formar uma nação através de gerações, algo em que o grupo de intelectuais românticos com quem Sarmiento dialogava, a chamada Geração de 1837, acreditava de forma apaixonada. Um resumo e uma análise das discussões sobre o formato de nação que queriam está na obra clássica de Tulio Halperín Donghi (1926-2014), o principal historiador do país, chamada “Una Nación para el Desierto Argentino”.
Tomara que o recente achado reavive essa memória, que já surge em algumas colunas de analistas neste fim de semana. Mais interessante seria digitalizar e imprimir o livro da professora Morse, para faze-lo acessível a pesquisadores e professores.