O drama de Goytisolo e a solidão dos escritores
Se as coisas não andam bem no mundo editorial, com vendas de livros caindo em grande parte dos países e a revolução digital fazendo despencar os índices de leitura de obras em papel, a agonia do escritor espanhol Juan Goytisolo, morto aos 86, no último dia 4, no Marrocos, é no mínimo um exemplo para reflexão.
Se antes um escritor com o renome internacional, os prêmios e o reconhecimento que ele teve não precisava se preocupar tanto com sua aposentadoria, hoje essa situação se transformou drasticamente.
Os últimos anos de Goytisolo foram narrados num excelente e polêmico artigo do colega e amigo Francisco Peregil, correspondente do “El País” no Marrocos. Com riqueza de detalhes, o jornalista conta as dificuldades econômicas que o autor foi tendo quando começou a perder a capacidade de produzir no mesmo ritmo que antes.
Apesar das ajudas oferecidas pelo jornal em que publicou uma coluna por longo tempo, do Instituto Cervantes e de vários amigos, Goytisolo passou tempos de extrema escassez, que o levou a uma aguda depressão, sempre atormentado pela ideia de que não conseguiria sustentar seus três filhos adotivos.
Algo de alívio veio em 2014, quando recebeu o prêmio Cervantes, o mais prestigiado da língua hispânica, que equivalia a uma quantia irrecusável para alguém em sua situação _125 mil euros. Mas, então, veio o dilema, Goytisolo não sentia que podia aceita-lo, por convicção. Afinal, tinha passado anos criticando a premiação. Pressionado pelos amigos e angustiado com o futuro da prole, acabou resignando-se para poder entregar aos filhos o dinheiro. O fato, porém, o afundou ainda mais num estado de depressão e confusão mental, acompanhado por quedas, internações das quais fugia porque não queria causar gastos aos familiares. Num de seus ápices de desespero, escreveu uma carta a um amigo pedindo ajuda para um suicídio assistido. Na carta, dizia que já não conseguia mais produzir nem tinha ânimo para criar: “Tampouco meu corpo aguenta mais. Cada dia constato sua deterioração e antes que esse declive afete minha capacidade cognitiva prefiro antecipar minha ruína e despedir-me da vida com dignidade.”
Filho de uma mulher que morreu num bombardeio durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), Goytisolo costumava citar Cervantes (1547-1616) em seus últimos anos, como exemplo da resiliência de escritores que tiveram imensas dificuldades materiais para sobreviver e mesmo assim, seguiram produzindo. Anti-franquista convicto, passou a maior parte da vida num auto-exílio, entre França e Marrocos. Por muitos anos, teve sua obra proibida na Espanha.
Antes que pudesse levar adiante o plano do suicídio assistido, levou um tombo na escadaria de seu café favorito de Marrakesh. Fragilizado, sua situação geral foi deteriorando-se. No começo deste ano, teve um problema cerebral, que acabou desencadeando sua degradação final e sua morte, no começo deste mês.
No dia seguinte, jornais pelo mundo saíram com obituários elogiosos de sua obra, composta por alguns clássicos recentes da literatura e do ensaio em espanhol, como “Señas de Identidad” (1965) e “Problemas de la Novela” (1959). Goytisolo também produziu contos e coberturas jornalísticas, como a da guerra da Bósnia (1992-1995).
Depois de publicado, o texto de Peregil contando a agonia de seus últimos anos chamou a atenção da comunidade literária. Surpreendentemente, houve fortes críticas dos que achavam que a vida pessoal de Goytisolo não deveria ser exposta dessa maneira. Outros, porém, consideraram o texto oportuno por conta da discussão que propunha, em tempos de crise do mercado editorial.
A aposentadoria dos escritores, nesse novo mundo do trabalho, da venda digital e menos rentável dos livros, e de ajustes no modo como se remunera o trabalho intelectual compõem um quadro de emergência sobre o qual a comunidade de escritores, editores e pensadores deveria estar refletindo de modo mais produtivo.
A boa notícia é que, nas próximas semanas, sai na Espanha a “Autobiografia” (Galáxia Gutenberg), na qual Goytisolo veio trabalhando irregularmente nos últimos anos, enquanto vai ao prelo um volume com seus textos inéditos.