Culturalmente, Brasil ainda é periférico, diz Nélida Piñon
Poucos dias depois de completar 80 anos, a escritora carioca Nélida Piñon exibe vitalidade ao caminhar por Buenos Aires e transitar pela Feira do Livro. “Conheço todo mundo aqui”, diz. Logo essa frase é confirmada, quando a entrevista com a Folha, no saguão do hotel Alvear, é interrompida porque María Kodama, viúva de Jorge Luis Borges (1899-1986), toca os ombros da amiga brasileira pelas costas e diz que tinha resolvido “dar uma passadinha” por ali apenas para entregar um livro a ela.
Além de participar da Feira do Livro de Buenos Aires, Nélida fará conferência na segunda-feira (8), na Biblioteca Nacional, com mediação do argentino Alberto Manguel, também diretor da instituição.
Leia, abaixo, a entrevista ocorrida neste sábado (6).
Folha – A sra. falará na Biblioteca Nacional, que já foi presidida por Borges, e com Alberto Manguel, que é seu discípulo. Como será?
Nélida Piñon – Primeiro, “senhora” não, me chame de “Nélida” e de “você”, por favor. Estar na Biblioteca que Borges conduziu será uma grande emoção, principalmente com Manguel, que além de ser um grande intelectual, tem a vantagem de estar num epicentro linguístico, algo de que nós, brasileiros, estamos longe. O português não conseguiu atingir a internacionalidade do espanhol. Por consequência disso, a nossa cultura ainda é muito periférica.
Infelizmente, o Brasil, com todo seu talento, com sua magia consolidada e fortificada, não conseguiu um espaço no mundo. Essa é a verdade. Nós ficamos satisfeitos, entusiasmados, mas sempre com pequenos feitos individuais. Não houve uma conquista coletiva de nossa cultura.
Folha – Qual o exemplo mais concreto disso, em sua opinião?
Piñon – Machado de Assis (1839-1908). Como é possível que apenas recentemente ele venha sendo descoberto, e ainda assim por um pequeno ciclo? Eu me lembro de quando falei dele à Susan Sontag (1933-2004) e o coloquei ao lado de Stendhal (1783-1842) como um dos grandes do século 19. Ela me olhou desconfiada. Depois, o leu, se encantou e escreveu sobre ele. Outros intelectuais estrangeiros também, mas tudo bem mais tarde, e com ressonância limitada.
Machado é um exemplo claro das limitações que cercam o Brasil.
Folha – E você acha que isso está apenas relacionado ao idioma? É certo que se traduz pouco no mundo anglo-saxão. Mas, mesmo assim, há outras literaturas que têm mais facilidade de transitar internacionalmente que a brasileira.
Piñon – Sim, hoje se traduz muito do mundo asiático, das ex-colônias britânicas e do Leste Europeu. Mas a tradução limitada é apenas um dos fatores para explicar nosso isolamento.
Há questões históricas também. A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) ajudou os escritores hispânicos no mundo. Por que? Porque as grandes cabeças e as grandes sensibilidades espanholas fugiram, foram expulsas, muitas vieram para a Argentina, outras foram para as grandes universidades do mundo hispânico nas Américas, e principalmente para as faculdades de Letras.
O que aconteceu foi que nesses países menores da América Latina, como Nicarágua, Peru, Equador, Bolívia, não havia uma ilusão de poder que os seduzisse. Isso fazia com que imigrassem para a Espanha e daí ao resto da Europa, porque havia uma ponte, uma identificação que se construiu após essa diáspora da Guerra Civil espanhola.
Já os intelectuais do Brasil se seduziram pela ilusão de poder que o Brasil oferecia por conta de seu passado imperial, de sua dimensão geográfica. Então eles não viajaram, praticamente.
Enquanto isso, na Europa, quem chegava primeiro da América Hispânica ia abraçando os que vinham depois, como fez o nicaraguense Ruben Darío (1867-1916) e tantos outros. A América Latina se reencontrava em Paris e em Madri. O intelectual brasileiro conheceu menos a vocação do exílio voluntário que seus pares pela região. E isso, além do idioma, da dimensão territorial do nosso país, colaborou para esse isolamento. São muitas as coisas que pesam nessa balança. E você tem razão, a culpa não é apenas do idioma.
Folha – Faltam ou faltaram políticas públicas também?
Piñon – Sim, claro. As autoridades brasileiras têm uma visão paroquial da cultura. Nunca entenderam que a cultura é tão importante que deveria estar no Ministério de Indústria e Comércio, por exemplo, porque precisa de estratégia de venda e de difusão.
O governo português atuou diferente. Por um tempo, viajava com escritores, artistas, intelectuais, fez campanha por eles. Isso colocou em destaque o país e o idioma. Tanto que ganharam um Nobel, com José Saramago (1922-2010), em 1998. E nenhum escritor brasileiro chegou a esse ponto.
Creio que o Brasil ainda não é tido em consideração numa dimensão literária internacional.
Folha – Você crê que os estereótipos, a ideia de que é o país do futebol e do Carnaval, atrapalham?
Piñon – Isso dificulta, estou de acordo. Mas é uma soma de coisas. O fato é que nós somos periféricos e não nos esforçamos em sair dessa posição.
Folha – Já que estamos aqui, conte-me de sua relação com a Argentina.
Piñon – Sempre foi muito especial. Fui uma leitora precoce de Borges e acompanhei desde cedo a revista “Sur” (fundada por Victoria Ocampo). Quando lancei meus primeiros livros, eles foram editados aqui e eu vim, fiquei conhecendo alguns autores dessa geração. De Bioy Casares (1914-1999), lembro que era um tipo elegante, mas muito discreto. Depois fiquei sabendo como era mulherengo e descontrolado com sexo (ri). Mas não me deu essa sensação.
Já Borges vi mais vezes. Visitei seu apartamento aqui, e assisti a algumas de suas conferências nos EUA. Lembro de ter participado de algumas muito seletas, para grupos de dez pessoas, no máximo. Ele já quase cego, os alunos atentos, uma mesinha com café e bolachas, e só. E Borges ali falando de poesia, tradução, literatura ocidental.
E me lembro quando recebeu o título de “honoris causa”, na universidade de Columbia, em 1971. Eu fui assistir a entrega, e o reitor disse que o dava a Borges como se estivesse entregando a Miguel de Cervantes (1547-1616). Por sorte a memória às vezes me falha, mas não a emoção. E me lembro de ouvir com muita emoção essas palavras. E, quando isso acontece, me emociono de novo…
Lembro também de, numa das conferências dele, haver um protesto de porto-riquenhos que estavam ocupando ilegalmente edifícios da universidade. Um deles, de boné, entrou caminhando pelo auditório, desafiante, derrubando cinzeiros metálicos, fazendo barulho, chamando Borges de fascista. E ele então se levantou friamente, abotoou o paletó, e disse que não discutiria numa sala onde havia mulheres. “Vamos debater isso lá fora”, disse, em tom de duelo, bem ao estilo borgeano.
E creio que a última vez que o vi foi na época da Guerra das Malvinas. Lembro de estar aqui e haver um clima de euforia no ar. As pessoas ocupavam as ruas, iam à praça celebrar Galtieri (o general que ordenou a invasão do arquipélago, em 1982).
Borges estava furioso com os militares, dizia horrores deles e daquela guerra que lhe parecia um erro. E eu o alertava, porque nas ruas havia muito entusiasmo, um entusiasmo violento, com a invasão, e que ele devia tomar cuidado. Foi um momento muito marcante para mim, ver a Praça de Maio cheia e aquele ímpeto de guerra no ar. Era assustador. Por sorte, Borges estava de partida para a Europa naquela mesma noite.
Folha – E sua relação com outros autores argentinos?
Piñon – Também fiquei amiga de Manuel Puig (1932-1990). Ele me levava pelo mundo underground, clandestino de Buenos Aires. Não só no que se refere ao universo gay, mas também me apresentou para foragidos políticos, gente que andava na clandestinidade. E comíamos nuns lugares baratos na região do porto, porque Puig nunca esteve bem de dinheiro. Mas esses lugares nem existem mais…
Folha – O que explica esse seu interesse pela região, que poucos escritores brasileiros têm?
Piñon – Acho que fui dos primeiros escritores brasileiros a valorizar o entorno, a América, ninguém tinha feito isso antes quando eu comecei a viajar e a fazer essas pontes. Tenho amor por esse lugar, pelas civilizações autóctonas, por escritores, como o peruano José María Arguedas (1911-1969), que no passado tinham lançado olhar para elas. Sempre fui contra que no Brasil se popularizasse o termo “índio”. Como? Se eram civilizações equivalentes à nossa, com seus códigos de conduta privados e compatíveis com as épocas que estavam vivendo? E por que não estudamos e estamos mais familiarizados com os incas e os maias?
Eu acho que ter uma dupla cultura é algo muito bom. Digo porque acho que me beneficiei disso (Piñon é de ascendência galega), eu sei que tenho dupla cultura sem perder em nada minha intensidade brasileira, e creio que isso está por trás do meu interesse pela região.
Folha – E quais outros países são especiais para você?
Piñon – Sem dúvida o México, por sua gentileza, sua forma de receber e homenagear a cultura. Lembro-me até hoje da festa de 80 anos do Carlos Fuentes (1928-2012). Era de uma solenidade, parecia um imperador sendo festejado.
E o mesmo fazem os mexicanos com celebrações dos mortos. O bonito delas não é a exaltação da personalidade, mas a ideia de que os vivos não deixam os mortos morrerem. Porque, se deixamos os mortos morrerem, se os esquecemos, aí sim caímos na barbárie. O México nos ensina isso.
Folha – E qual a constante na cultura política latino-americana que você não aprecia?
Piñon – Acho que uma pergunta que cabe fazer-nos é por que essa vocação em relação aos poderes fortes? Aos presidencialismos fortes? Parece que há um desejo de ditadura latente. Como é que, se a Constituição diz que você só tem 4 anos, o sujeito vai lá e mexe e, de repente, tem direito a mais 20? Isso é ditadura pura, uma desconsideração total em relação ao povo.
Folha – A eterna ideia do salvador da pátria seria uma marca inevitável?
Piñon – É uma marca terrível da qual não temos conseguido nos livrar, pelo menos até agora. A razão cultural disso, creio que há muitas. Existe a ideia da ausência da figura do pai em alguns países. E o parricídio que Juan Rulfo (1917-1986) evoca em “Pedro Páramo” é um exemplo de tratamento literário dessa questão. Um lar que é abandonado pelo pai não é algo que se possa apagar, pensar que não fez falta. Há uma questão de desequilíbrio afetivo e histórico na região.
Não creio que caiba também apenas jogar culpa no passado. Precisamos entender o contexto da situação em que estamos, mas não adianta dizer que porque fomos dominados pelos espanhóis ou pelos portugueses estamos condenados a tiranias perversas para sempre.
Precisamos parar para pensar porque celebramos falsos heróis, achando que eles podem tudo e nós, nada.
Folha – Nesse contexto, como vê a atual crise no Brasil?
Piñon – Eu penso que Brasília apagou o Brasil. O Brasil não existe em relação à Brasília. Eles se organizam como se Brasília fosse o Brasil inteiro. Eles falam pelo Brasil, eles decidem nosso destino, mas não levam em conta a existência de fora do perímetro de Brasília. Isso é um drama que vamos arrastar até quando? Até quando vamos ser desconsiderados? Às vezes nós temos uma euforia democrática e logo todo mundo esquece e os tiranos democráticos aparecem. Porque é o que são, tiranos democráticos.
Em 1970, o Médici foi aplaudido nos estádios de futebol. Nós tínhamos ganho a Copa do Mundo, o Brasil ia bem economicamente. Naquelas condições, o país aceitaria o que fosse daquela ditadura, e aceitou. O Brasil do povo, não o Brasil pensante, foi ao estádio e o aplaudiu. Como se desvencilhar de uma ilusão? Só com conhecimento.
Sobre a crise atual, estou perplexa, acho que estamos todos perplexos. É um fato que excede a imaginação, como isso se processou sem que nós percebêssemos? A proliferação dos partidos, os acordos, o fortalecimento do poder. Olho Brasília com uma infinita desconfiança, é o lugar menos patriótico do país. Em certo sentido, talvez tenha sido um erro levar a capital para lá, aumentar o custo de manter o poder, a burocracia, criar essa distância da população. Enfim, não é fácil analisar aquilo que te escapa.
Folha – Você se diz uma feminista histórica. Há um novo momento do feminismo no Brasil?
Piñon – Sim, e ainda bem. Porque eu vinha dizendo, havia anos, em entrevistas que as mulheres tinham achado que, por conta de algumas conquistas pessoais, o feminismo já era uma luta do passado, que as coisas já tinham sido conquistadas. Mas o fato é que o que se tinha conseguido era muito pouco.
Foi só depois que se viu o tamanho do problema, que a institucionalização da cultura do estupro é um fato, assim como a violência doméstica e as diferenças salariais. Fico feliz de uma nova geração ter empunhado de novo essa bandeira. Essa é uma luta que está longe de ser superada. E o homem tem que provar que não está a favor de que esses abusos sigam acontecendo. Se eles se calam, está embutido aí uma aprovação. Por isso que se trata de uma mudança que a sociedade precisa impulsar, com a luta das feministas, mas com a ação masculina também. Seu silêncio é uma anuência.