No começo, eram as Loucas da Praça de Maio

Sylvia Colombo
Uma das primeiras marchas das Mães da Praça de Maio (Foto AFP)

“En Argentina, las locas de Plaza de Mayo serán un ejemplo de salud mental porque ellas se negaron a olvidar en los tiempos de la amnesia obligatoria” (Eduardo Galeano)

Há 40 anos, as primeiras Mães da Praça de Maio _como só ficariam conhecidas depois_ saíram a reclamar a reaparição, com vida, de seus filhos sequestrados. Naquele já distante 30 de abril de 1977, elas compunham um grupo de apenas 14.

Depois de perguntar inutilmente pelos jovens em delegacias, repartições do Estado, igrejas, hospitais e de pedir ajuda, inutilmente, aos grandes jornais e meios televisivos, elas decidiram que marchariam todas as quintas-feiras, às 3.30pm, com panos brancos envolvendo a cabeça, diante da Casa Rosada _sede do governo argentino.

O fato de serem logo identificadas como “as Loucas da Praça de Maio” diz muito não apenas sobre o machismo da sociedade argentina daquele tempo, mas também sobre o alto teor de cumplicidade, medo ou covardia de grande parte dos argentinos diante de um problema que ia-se fazendo cada vez mais presente: dia após dia corriam boca-a-boca novas histórias de pessoas que iam sendo sequestradas pelos agentes da repressão da ditadura militar (1976-1983).

Neste aniversário de 40 anos da luta das Mães, vale lembrar esse detalhe que parece uma piada de mau gosto: o fato de terem sido chamadas de “loucas” por um bom tempo. Essa lúgubre anedota é sinal de que essas mulheres não sofreram apenas a perda dos filhos, mas também o preconceito e o menosprezo por parte de muitos. Nos dias de hoje, em que voltaram a surgir vozes que questionam o número de mortos e que tentam minimizar os horrores do regime, parece que esse adjetivo pejorativo de 40 anos atrás volta a ganhar vida.

Muita coisa ocorreu desde aquele 30 de abril até hoje. As Mães tornaram visível uma terrível atrocidade cometida por parte do Estado e colaboraram para que, até agora, já tenham sido emitidas mais de 900 condenações a repressores na Argentina.

O general que comandou o país no começo daqueles anos de chumbo, Jorge Rafael Videla (1925-2013), morreu de fato detrás das grades, enquanto outros comandos também receberam altas penas. A Argentina avançou no esclarecimento dos crimes cometidos pelo Estado como nenhum dos países do Cone Sul logrou fazer. Dos generais brasileiros, nenhum foi condenado. O chileno Augusto Pinochet (1915-2006) até passou uns maus momentos de prisão domiciliar em Londres, mas jamais foi para a cadeia.

Porém, o passado das Mães também ficou manchado por erros e atitudes de algumas delas. O grupo não se manteve coeso o tempo todo. Sob a liderança da combativa e revanchista Hebe De Bonafini, uma seção deixou-se transformar em braço político do kirchnerismo. Controversa, Bonafini, que perdeu dois filhos na ditadura, chegou a defender o ataque às Torres Gêmeas e aceitou administrar um projeto de construção de moradias financiado pelo governo Cristina Kirchner, depois acusado de desvio de verbas.

Outro grupo, porém, chamado de Línea Fundadora das Mães da Praça de Maio segue mantendo a ideia de que a luta para esclarecer as desaparições é algo que se refere ao Estado e à sociedade como um todo e não deve ser usado como peça de propaganda de nenhum governo.

As Mães estão desaparecendo, por uma questão natural: a maioria das que restaram já passou dos 80, algumas já não têm mais condições físicas ou forças para marchar. Por isso é importante lembrar esse aniversário e celebra-las. Sim, houve erros e exageros, mas sua luta é praticamente única na história da região.

Vale homenagear, especialmente, aquelas pioneiras que, além de enfrentarem o medo e o preconceito, foram também elas mesmas caçadas e exterminadas _três delas foram atiradas às profundezas do Rio da Prata nos temidos “voos da morte”.

Parabéns, Mães da Praça de Maio. Loucura hoje é achar que sua luta não teve sentido.