Cinema argentino levanta voz contra Macri

Sylvia Colombo
Manifestantes realizam protesto na abertura do Bafici, em Buenos Aires (Foto Télam)

Não é de hoje que o cinema argentino é um espaço de debate e de enfrentamento político. A própria “buena onda”, que fez com que muitos espectadores brasileiros passassem a ser fãs de carteirinha da produção do país-vizinho, teve lugar no início dos anos 2000, quando a Argentina passava por sua mais grave crise política e econômica da história recente.

A abertura, na noite de quarta-feira (19), da décima nona edição do BAFICI, festival de cinema independente, não deixou de refletir a atual “grieta” (fenda) que divide a sociedade argentina. Desta vez, agravada por uma ação de intervenção do governo federal no Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales  (INCAA), que funciona como uma autarquia.

Na semana passada, o ministro de Cultura do país, Pablo Avelluto, pediu a demissão do presidente da instituição, Alejandro Cacetta, um nome até aqui respeitado entre atores e diretores.

O exitoso e produtivo cinema argentino, que coloca no mercado cerca de 200 títulos ao ano e que já levou dois Oscars de filme estrangeiro (“A História Oficial” e “O Segredo de Seus Olhos”), praticamente se auto-financia e é considerado um modelo para outras escolas pelo mundo. Os filmes bancados pelo INCAA distribuem dinheiro de um Fundo formado por 10% do valor pago por espectadores nas bilheterias de cinemas pelo país, além de uma taxa paga por canais e emissoras que reproduzem filmes nacionais.

Pois bem, a atual gestão do presidente Mauricio Macri resolveu passar um pente-fino no órgão, levando para a Oficina Anticorrupção, outro órgão do Estado, uma série de denúncias contra o INCAA. De fato, nos últimos anos, o órgão acumulou suspeitas de desvio de dinheiro e superfaturamento de serviços. E, durante os anos do kirchnerismo, acusações mais subjetivas, relacionadas a aprovação de projetos que apresentavam uma imagem positiva do peronismo, em filmes como “Juan y Eva” ou, no caso mais escandaloso, o documentário sobre Néstor Kirchner (1950-2010). Com relação a este último, ocorreu algo insólito. A então presidente Cristina Kirchner pediu a substituição do diretor que vinha realizando a produção para que pudesse intervir em seu conteúdo.

Ou seja, coisas a investigar no INCAA não faltam, assim como são benvindas medidas de modernização que o governo quer propor à Lei de Cinema em vigor, determinando, por exemplo, que empresas de vídeo on-demand que atuem no país também aportem algo para financiar o cinema argentino. O caso é que o modo como essas ações vêm sendo tomadas estão passando uma imagem autoritária de intervenção federal, justamente numa indústria na qual atuam artistas e intelectuais de esquerda, em sua maioria anti-macristas.

O barulho vem sendo grande. Já se posicionaram contra a demissão do diretor os atores Leonardo Sbaraglia (“Relatos Selvagens”), Darío Grandinetti, estrela de alguns filmes de Pedro Almodóvar, assim como Viggo Mortensen, que é norte-americano, mas passou boa parte da vida na Argentina, onde tem família e torce para o San Lorenzo. Também alçou a voz em protesto o diretor Juan José Campanella, ganhador de um Oscar por “O Segredo de Seus Olhos”, que chegou a se reunir com o chefe de gabinete de Macri, Marcos Peña, para pedir a recontratação de Cacetta.

Do lado do governo, o ministro Avelluto saiu a dar entrevistas nesta quinta (20), garantindo que não haverá diminuição do orçamento nem corte de pessoal, algo que já ocorreu em outras instituições de cultura altamente comprometidas com o governo anterior, como a Biblioteca Nacional.

Avelluto reforça que a demissão de Cacetta não pode ser considerada uma intervenção. “O fato de o INCAA ser uma autarquia não quer dizer que seja um principado dentro da Argentina. Trata-se de uma instituição que pertence ao Estado e que deve cumprir as leis”. Os próximos passos do governo dentro do instituto serão, portanto, definitivos para saber se artistas, diretores e técnicos do cinema argentino engrossarão o coro anti-governo ou vão se alinhar ao presidente, como ocorreu na gestão anterior. E, obviamente, se isso se refletirá no conteúdo das produções nos próximos anos.