Venezuela, mitos e verdades sobre o 19 de abril

Sylvia Colombo
Reconstrução do 19 de abril de 1810 venezuelano (Foto Reprodução)

Tanto a oposição quanto o governo, que prometem ir às ruas na Venezuela amanhã (19), uns para protestar, outros para defender a gestão de Nicolás Maduro, andam propagando interpretações equivocadas, senão delirantes, sobre a data histórica que realmente é celebrada a cada 19 de abril no país caribenho.

De seu lado, o governo diz que estará nas ruas com seus apoiadores para “ratificar o compromiso de independência e de soberania da pátria com a Revolução Bolivariana”, segundo as palavras do vice-presidente, El Aissami. Já a oposição crê que se trata de uma data conveniente para manifestar-se contra o autoritarismo do atual regime porque, com o 19 de abril de 1810, teria nascido a república e a democracia venezuelanas. 

Ambos estão equivocados. Afinal, a história sempre é mais complexa do que evocam essas comemorações, e o 19 de abril só pode ser interpretado como o início do processo de independência agora, passados vários acontecimentos. Em seu momento, não passou de um ato de rebeldia da elite caraquenha contra a intervenção de Napoleão na política e nos negócios da Coroa espanhola. Mais, tratou-se, na verdade, de um ato de subordinação ao rei espanhol.

Vamos aos fatos. Em seu avanço sobre a Europa, Napoleão havia subjugado a Espanha, depondo seu rei e colocando, em seu lugar, nada menos que seu irmão mais velho, José Bonaparte. O episódio teve repercussões em vários cantos da América Hispânica, e os chamados “cabildos” foram formados em muitos dos que viriam a ser futuros países. Sua composição, porém, era a princípio muito variada. Sim, havia defensores das ideias de independência e de república neles, mas a força que os movia inicialmente era a de não reconhecer a autoridade de José Bonaparte e de se pronunciar a favor do rei deposto.

No caso da Venezuela, esse grito de revolta se deu em 19 de abril de 1810. Um grupo de “criollos” e de aristocratas se rebelou contra o capitão geral da Venezuela, Vicente Emparan, a autoridade enviada em nome do rei considerado usurpador do trono espanhol.

Naquela manhã, sentindo-se acuado, Emparan teria saído à varanda da sede de governo local e perguntado à multidão que estava do lado de fora se queria que ele seguisse governando. Um padre, José Cortés Madariaga, teria, então, puxado um coro pedindo que Emparan fosse embora. O funcionário espanhol não resistiu, renunciou ao cargo e partiu logo depois à Madri.

Um grupo de notáveis caraquenhos então se reuniu no Cabildo de Caracas, e se formalizou então a Junta Suprema de Caracas, então germe do primeiro governo autônomo do país. Porém, muita água (e muito sangue) ainda passaria por debaixo da ponte até que a Venezuela se transformasse numa república independente. Falar de início da Revolução Bolivariana naquele distante dia 19 de abril é outro erro histórico. Apesar de já estar no cenário como um agitador político, Simón Bolívar sequer estava em Caracas naquele dia.

A Junta continha duas facções, que passaram tempos disputando suas bandeiras. Uns eram separatistas, os outros, chamados de “fidelistas”, queriam que a Venezuela seguisse parte de uma Espanha livre de Napoleão. Foi nesse âmbito que os defensores da independência foram ganhando força e adeptos, não sem antes se enfrentarem em debates bastante acirrados com os que eram contrários à ideia. A Junta foi tomando algumas decisões que já não dependiam mais de Madri, entre elas, medidas para liberar o comércio exterior, extinguir o monopólio espanhol e proibir o comércio de escravos. Buscando legitimidade, mandaram enviados atrás de apoio na Inglaterra e nos EUA.

Chamou-se, então, eleições para um Congresso Constituinte. Eleições, diga-se de passagem, bastante restritas. Nelas, votavam apenas homens livres, maiores de 25 anos e proprietários. Não havia voto feminino, nem de venezuelanos pobres, muito menos de negros. Falar de decisão popular, portanto, é outro equívoco.

Este Congresso, porém, foi seguindo a onda da história que tomava a região naquela época. Depois de adiamentos, idas e vindas, assinou-se pela primeira vez uma independência do país, em 5 de julho de 1811. Inaugurou-se, assim, o período conhecido como Primeira República, logo depois reprimido pelos espanhóis, que voltaram à carga para reconquistar seus espaços perdidos nas colônias. Logo, seguiram-se mais e mais lutas e batalhas, período em que, aí sim, atuaram tanto Simón Bolívar quanto o já veterano Francisco de Miranda. Palmo a palmo, foram conferindo a liberdade dessas terras e popularizando as ideias republicanas. A verdadeira transformação da Venezuela em um país independente se daria apenas em 1830, quando terminou o período da chamada Gran Colombia.

Não é de se estranhar que, em um país que transforma Simón Bolívar em líder socialista, outras datas sejam distorcidas. Mas é sempre bom lembrar que a história não é feita num só dia nem por um só homem, e é resultado de processos, debates e embates mais complexos. Já que o 19 de abril está sendo evocado pelos dois lados dessa contenda, cada um puxando para o que lhe convém, vale lembrar o que de fato significou, para que ajude o país a seguir no caminho da construção da democracia e da república, caminho este do qual a Venezuela anda escorregando perigosamente.