Efemérides lembram luta e literatura de Rodolfo Walsh
São várias as efemérides que fazem com que Rodolfo Walsh (1927-1977) volte a ser debatido na Argentina, por esses dias e neste ano. No último sábado (25), completaram-se quatro décadas de sua desaparição _Walsh foi sequestrado na última ditadura (1976-1983), e seu corpo jamais foi encontrado. Em 2017, também se lembra o aniversário de 90 anos de seu nascimento e se celebram os 60 da publicação de seu principal livro, “Operação Massacre” (Companhia das Letras), considerado um clássico do jornalismo literário latino-americano e precursor de uma tendência que seria continuada depois por Truman Capote, Norman Mailer e outros autores.
Walsh foi lembrado nas marchas de aniversário do golpe militar _de 24 de março de 1976_ que ocorreram em memória dos mortos em Buenos Aires e em outras cidades, na última sexta-feira. Seu nome é tomado hoje como bandeira de jovens militantes esquerdistas, que se inspiram em sua atuação como montonero em seus últimos anos de vida. Também, a partir da semana que vem, sua obra será homenageada com uma exposição na Biblioteca Nacional da capital argentina.
Mas a política não apareceu cedo na vida de Walsh. Nascido na Patagônia, até os 29 anos tinha tido uma trajetória de modesto aspirante a escritor policial, e também era tradutor e corretor de textos da editora Hachette. Tudo mudou mesmo numa tarde de 1956, quando estava tomando cerveja num bar de Buenos Aires com amigos e escutou a enigmática e por si só literária frase:
“- Há um fusilado que vive”.
Sussurrada, a sentença se referia a um medonho episódio recente, no qual um grupo de civis havia sido morto num lixão de José León Suárez, na Grande Buenos Aires, em 10 de junho de 1956. Perseguidos pela polícia, aqueles homens tinham sido tomados como militantes que estariam conspirando realizar uma rebelião contra o general Pedro Eugenio Aramburu, que no ano anterior tinha chegado ao poder depois do golpe militar que derrubara Juan Domingo Perón (1895-1974).
Movido pela frase escutada no bar, Walsh ficou obcecado pela história, largou o emprego e mudou-se para o local dos fatos para investigá-los. Logo, descobriu que não apenas um, mas sete homens tinham escapado com vida do fuzilamento. Ainda, que não se tratavam de ativistas peronistas, mas sim de um grupo de amigos reunidos para ouvir uma luta de boxe pelo rádio. E, o que era mais importante, que o horário do incidente não batia com o que tinha sido informado. A polícia justificava a prisão dizendo que o grupo havia sido pego depois do toque de recolher da lei marcial em vigor, mas Walsh desvendou que isso era equivocado, e sim que a ação tinha ocorrido horas antes. Desta forma, uma prisão que poderia ser justificada pelas autoridades se transformava num brutal crime da repressão.
“Operação Massacre” é uma aula de jornalismo e de literatura, pela riqueza de detalhes e o estilo narrativo com o qual Walsh reconstrói a trágica noite. Primeiro, monta o perfil dos envolvidos. Depois, relata como se deram a reunião e a chegada dos policiais. Segue-se a descrição de como foram levados ao lixão e o desenlace da operação, que não saiu nem um pouco como fora planejada pelos agressores. Os presos tinham sido obrigados a caminhar guiados pela luz de um automóvel. Mas esta não era suficiente e logo alguns deles saíram do campo de visão dos algozes, que atiravam neles pelas costas. Alguns, por isso, puderam correr, outros deixaram-se cair para fingir-se de mortos, salvando-se.
A polícia passou os dias seguintes tentando recapturar os fugitivos, mas já era tarde. Um dera entrada num hospital, fora preso novamente e seus familiares tornaram o assunto público. Outros se asilaram em embaixadas de outros países, e o caso foi sendo espalhado, ainda que aos sussurros, entre a população de um país assustado, que vivia sob um comando autoritário.
Walsh também escreveria outros livros políticos, “El Caso Satanowsky” (sobre o assassinato de um advogado, em 1957) e “Quién Mató a Rosendo (sobre a execução do sindicalista Rosendo García, em 1966). Mas sua obra literária é bastante mais vasta. Walsh foi um prolífero autor de contos policiais, em que a política se mete de modo sutil, ao surgir do estudo das entranhas das relações sociais e familiares, e de histórias meio memorialistas, inspiradas em sua infância na Patagônia, como estudante de um colégio de religiosos católicos irlandeses.
Walsh tinha ascendência irlandesa e isso ajudou a forjar seu caráter combativo, de poeta-soldado, pois, na época ditatorial, e já atuando na resistência, inspirava-se nos guerrilheiros que lutaram pela independência do país onde nascera seu pai.
Seu último texto é considerado seu testamento político, “Carta Abierta de un Escritor a la Junta Militar”, distribuído um dia antes de sua morte, e que denunciava as desaparições e os abusos do regime. No dia 25 de março de 1977, na movimentada esquina das avenidas San Juan e Entre Ríos, agentes da repressão desceram de um par de carros verdes Ford Falcon, cercaram o escritor e o crivaram de balas, levando-o dali ainda com vida.
Seu caso é um dos que vêm sendo julgados dentro da causa dos mortos da ESMA (Escola Superior da Marinha, principal centro clandestino da repressão), mas pouco de consistente foi realmente revelado sobre o que de fato foi feito com ele. Também se buscam alguns escritos que ele levava consigo e, o principal, onde está seu corpo.
Sua filha, a ex-deputada e jornalista Patricia Walsh, segue buscando-o. A Argentina também se beneficiaria com a resolução desse trágico episódio. Apenas a verdade histórica e a reparação é capaz de curar feridas. E a ferida aberta pela ditadura argentina está longe de ser curada, justamente porque muitos corpos, como o de Rodolfo Walsh, jamais foram encontrados.