Bolívia debate lei de aborto que desagrada Igreja e feministas
Parece avanço na legislação de direitos civis e de gênero. Mas, na prática, significa mais intromissão na vida e nos desejos das mulheres, com vistas a combater a pobreza limitando seus direitos. O projeto de lei levado pela ala progressista do MAS (Movimento ao Socialismo) ao Congresso propondo ampliar a despenalização do aborto lembra mais as estratégias de esterilização em massa dos tempos de Alberto Fujimori (1990-2000) no Peru do que um real avanço na área dos direitos das mulheres.
O projeto prevê que, além dos três casos em que o aborto já é permitido no país (risco à saúde ou à vida da mulher e estupro), sejam aceitos outros seis: casos de pobreza extrema, falta de recursos para manutenção da família, má formação do feto, se a mulher já tiver três filhos, for estudante ou adolescente. Nesses casos, terá de preencher um formulário, que será avaliado pela Justiça, que então autorizará ou não o procedimento.
A iniciativa tem apoio de entidades de defesa dos direitos da mulher alinhadas ao governo, como a Confederação Nacional de Mulheres de Comunidades Interculturais. Para elas e para os legisladores que defendem a ampliação da legislação, o aborto deve ser facilitado às mulheres mais pobres para evitar as indesejadas mortes por meio de procedimentos clandestinos e para combater a pobreza. Obviamente as duas causas são nobres e defensáveis.
Porém, do jeito que se apresenta o texto, o aborto não surge como um direito natural da mulher, e sim como uma ação invasiva do Estado para que o país melhore em alguns dos índices nos quais, atualmente, passa vergonha internacional (pobreza e mortalidade feminina).
A Igreja Católica já se manifestou contra. Talvez pela primeira vez uma proposta de ampliação da despenalização do aborto desagrade tanto a religiosos como a feministas independentes, que defendem que o aborto seja uma decisão apenas da mulher e que não tenha que passar por requisitos sociais e econômicos impostos pelo Estado _muito menos que seja apresentado como medida para que mulheres pobres procriem menos.
O vice boliviano, García Linera, retrucou os argumentos da Igreja local mencionando o papa Francisco, quando este declarou que as mulheres que praticam o aborto deveriam ser “perdoadas”. Dessa forma, deixou claro o reacionarismo da gestão Evo Morales no que diz respeito aos direitos da mulher, pois assume que define, assim como faz o papa, que a mulher que pratica aborto como culpada de algum crime.
O projeto agora parte para votação na Câmara de Deputados e no Senado. Em ambos, o MAS tem maioria, ainda que, neste caso, exista divisão de opiniões dentro do próprio partido.
Pedi a opinião da ativista feminista mais importante da Bolívia sobre o polêmico projeto de lei. Abaixo, reproduzo resumidamente a resposta de Maria Galindo, fundadora e diretora do grupo Mujeres Creando. Apesar de ver a proposta como resultado do aumento da pressão de grupos feministas, Galindo a critica por seu aspecto de oportunismo político.
“O projeto abriu novamente a discussão sobre a tutelagem cultural e religiosa do Estado sobre a vida das mulheres. No que se refere à pobreza e à regulação por estratificação social, virou um debate sobre o quanto o Estado ainda pode vigiar ainda mais seus corpos e vidas. Amplia as causas em que o aborto seria permitido mas mantém o problema maior intacto, que é a ingerência do Estado sobre a soberania da mulher sobre seu corpo. Ao mesmo tempo, desatou-se uma perseguição policial sobre os consultórios clandestinos, prendendo, inclusive, as mulheres que se submetem à prática. Nós defendemos a despenalização irrestrita do aborto de forma a devolver às mulheres a condição de sujeitos numa sociedade com liberdade de consciência e de decisão sobre seus próprios corpos.”