Café que abrigou intelectuais e resistiu ao Bogotazo luta para não fechar
Poucos edifícios do então centro financeiro de Bogotá seguiram de pé ou não foram incendiados ou gravemente abalados naquela tarde fria de 9 de abril de 1948. Tudo havia começado na hora do almoço, quando um dos líderes mais populares da história da Colômbia, o carismático Jorge Eliécer Gaitán (1903-1948) foi morto a tiros em plena rua. O caos do chamado “Bogotazo” rapidamente tomou conta daquela capital andina, de outras cidades do país, dando início a um período mais longo conhecido como La Violencia, que durou semanas, meses e até mesmo poderíamos dizer décadas, se considerarmos, como muitos historiadores o fazem, este um momento fundacional da violenta divisão do país que deu lugar ao embate de guerrilhas e governos que segue até hoje.
Alguns desses locais, porém, seguem de pé. E o bar San Moritz, fundado por dois irmãos ingleses em 1937, felizmente é um deles. Diz-se que foi poupado da onda de destruição daqueles dias por ser um dos preferidos da intelectualidade ligada a Gaitán. Mas não só, o San Moritz era frequentado, desde sua fundação, por escritores e artistas de esquerda, liberais e conservadores. Um deles era nada menos que Gabriel García Márquez (1927-2014).
Gabo conta, em “Viver para Contar”, o primeiro volume de sua autobiografia _que acabou não completando_ seus passos pela cidade no dia do Bogotazo. Era, então, um estudante de 21 anos que ainda não tinha se acostumado ao frio daquelas alturas e vivia usando suas roupas leves da costa colombiana sobrepostas, para ver se aplacava aquela terrível sensação. Outros de seus refúgios eram os ônibus _agarrava um e ia até o fim de sua linha, depois voltava, sempre lendo_ ou os cafés, como o San Moritz.
Outros que também o frequentavam, além de Gaitán e Gabo, eram Álvaro Mutis, José Antonio Osorio Lizarazo ou Eduardo Zalamea Borda. O mais curioso deste bar simples e sem nenhum luxo é que ele quase nada mudou desde aquela época. Uma máquina de café, poucas opções de comida, preferencialmente com público masculino e conversas quase sempre em voz alta. Duas coisas desapareceram completamente, por conta das novas leis municipais: não se pode mais fumar ali dentro nem jogar bilhar (antes, se jogava apostando dinheiro).
O entorno, sim, mudou um pouco. Localizado na famosa Calle 16, entre as avenidas 7a e 8a, por conta da fama dos frequentadores, o café acabou contaminando o clima dos arredores. Hoje, a Calle 16 é conhecida como “el callejón de los libros”, e são muitos os ambulantes que passam o dia ali vendendo obras antigas, edições raras e muita literatura barata e popular.
Pois o San Moritz está em dificuldades. Até pouco tempo atrás, o imóvel ainda pertencia à família fundadora. Agora, foi vendido. Apesar de os novos donos anunciarem que querem continuar com o negócio funcionando, os impostos nessa região aumentaram muito, e vender café para pessoas que passam horas sem consumir muito mais do que isso em mesas grupais não é algo rentável. Diante da ameaça de que as contas em algum momento não fechem mais e os proprietários decidam dar outro fim ao imóvel, alguns frequentadores e a herdeira do negócio, Hilda Vásquez, estão buscando ajuda.
A ideia é apoiar-se num projeto já idealizado pela prefeitura, mas ainda não colocado em marcha, inspirado no dos Cafés Notables de Buenos Aires, por sua vez idealizados ao modo francês _que consiste basicamente no direito de alguns estabelecimentos de ter um subsídio, por conta de seu valor histórico, para manter-se. O projeto colombiano, do Instituto Distrital de Patrimonio Cultural (IDPC), se chama Bogotá en un Café, mas ainda não decolou.
São poucos os que ainda evocam a atmosfera daqueles tempos. Assim como o San Moritz, o Café Pasaje (1936) ou a pastelería Belcázar (1942) são frequentemente buscados para locações de filmes que se passam naqueles tempos. Mas se contam nos dedos os que completam esse circuito.
Uma coisa que o San Moritz precisaria resolver de imediato era ter horários de funcionamento regulares, que permitissem sua inclusão em roteiros turísticos, por exemplo. Mas isso não ocorre. Em dias em que há poucos funcionários ou em que falta algum recurso (água, luz) ou ingrediente, ele simplesmente fica de portas fechadas por várias horas. Outra providência seria buscar algum tipo de patrocínio para consertar e pintar suas paredes internas, desgastadas e descoloridas, assim como seus pilares corroídos. Há muitos, porém, que veem aí marcas da história que é melhor não apagar e que assim fiquem, como documento.
Em 2014, fiz uma reportagem (http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/05/1452303-reporter-visita-pontos-frequentados-por-garcia-marquez-em-bogota.shtml) sobre os locais de Gabo em Bogotá, pouco depois de sua morte, pode ser lida no link.
Só de imaginar detrás dessas portas vermelhas se conceberam obras literárias e revoluções populares, é de se torcer que o local siga aberto ainda, por muitos e muitos anos.