Obra expõe impacto da violência política no Equador e na Argentina
Nesses dias no Equador, tive o prazer de conhecer um escritor cujo quinto e mais recente romance me agradou muito: Oscar Vela, 48, autor de “Todo Ese Ayer” (Alfaguara, importado). Entre suas várias qualidades, a obra se destaca por estabelecer pontes entre episódios recentes da história latino-americana. Parece algo banal, mas poucos escritores hoje em dia pensam num contexto regional quando refletem sobre suas sociedades.
“Todo Ese Ayer” conta uma história que cobre um arco de cerca de 40 anos. Os dois personagens principais, o equatoriano Federico e o argentino Sebastián, se conhecem na Argentina dos anos 1970. Adolescentes, são amigos inseparáveis, até que o primeiro, filho de diplomatas, tem de voltar a Quito, e nunca mais vê o segundo, que, num arroubo juvenil e numa atitude de revolta contra sua família endinheirada, resolve se juntar à guerrilha dos montoneros.
Por mais de três décadas, Federico pensou que Sebastián estava morto, pois sabia que tinha sido preso pela repressão e nunca mais tivera notícias dele. Para ele, a vida seguiu. Por meio de um casamento de conveniência, ascendeu à casta dominante da elitista cidade de Quito. E aí está quando a trama começa, num emprego arranjado pelo sogro poderoso, casado com uma mulher carola a quem já não suporta mais, e tendo um caso extra-conjugal, único alívio para sua depressão, quando, de repente, chega em sua caixa de mensagens uma mensagem de Sebastián, pedindo ajuda.
O trajeto de Sebastián vai se revelando de forma mais misteriosa, aos poucos. Sabe-se que ele sobreviveu aos centros clandestinos da ditadura (1976-1983), mas por uma razão bem pouco nobre. Sebastián foi o que, na Argentina, se chama de um “soplón”, ou seja, alguém que denunciou companheiros, que acabaram sendo presos e mortos por sua culpa. Salvou-se por entregar nomes e porque um parente influente o ajudou a sair da prisão e do país, coberto de vergonha. Escondeu-se, então, num país europeu, num apartamento que mobiliou praticamente apenas com um sinistro e nostálgico labirinto de livros, e passou esses anos todos paranóico com relação a uma possível vingança de alguma vítima de suas denúncias. Além de carregar um imenso sentimento de culpa que o esvaziou de possíveis razões para querer viver.
Quando se vê numa situação de desespero, Sebastián, que é baseado num personagem real, procura Federico. Porém, a vida ideal que este vinha levando por conta de seu casamento arranjado _em que tinha acesso a uma bela casa, clubes exclusivos, viagens à Europa e contas no exterior_ justamente vinha se derrubando. Um detetive contratado pela esposa, a pedido do sogro que o queria destituir da herança, havia encontrado evidências de um “affair” de Federico com uma outra mulher.
Expulso de casa e empobrecido, porque a partir do escândalo lhe cortaram o acesso às benesses que tinha, Federico vai parar num hotel barato, onde se embebeda e começa a se meter com outros excluídos da sociedade e suas sujas artimanhas para voltar a ter influência e poder.
É a partir desse ponto de vista que começa a interpretar e a criticar a sociedade equatoriana. Ao mesmo tempo, ao reavivar seu vínculo com Sebastián, vê os efeitos que a ditadura argentina ainda impõe àqueles que a sobreviveram, marcando-os muitas vezes com o signo da tragédia.
“Essa história apareceu para mim. Alguém me contou que tinha um amigo como Sebastián, que sumiu por 30 anos por conta dessas razões. E me senti forçado a escreve-la”, me conta Vela, em entrevista realizada em Quito, poucos dias antes do primeiro turno das eleições.
O caso do ex-montonero que se perdeu no mundo, porém, fez com que Vela refletisse também sobre quão pouco se faz literatura no Equador, principalmente sobre a história do país. “Eu já tinha lido tanta coisa sobre a ditadura argentina, é um país que sempre está pensando sua história em termos literários, e nós não fazemos isso, e não fazemos principalmente porque o Equador não é um país de leitores (o índice de leitura per capita é de meio livro por ano).”
Assim, surgiu a ideia de fazer a ponte entra a incrível história real que acabara de ouvir, a do ex-montonero que todos davam por morto e que reapareceu 30 anos depois, com a do Equador dos anos Rafael Correa (2007-2017).
Para isso, escolheu um episódio que marcou a virada desse que era, até então, apenas um governo de esquerda de tom marcadamente populista mas que, em determinado momento, se transformou em um regime mais centralizador e autoritário. Essa passagem é conhecida pelos equatorianos como o “30-S” e ocorreu em 30 de setembro de 2010, quando uma revolta de policiais contra uma lei de salários foi reprimida de maneira violenta pelo governo, que por sua vez o interpretou como um “golpe de Estado”. A partir de então, Correa começou uma investida mais acirrada contra a Justiça e a imprensa.
“O 30-S foi algo rápido, durou um dia, mas significou um rompimento, um trauma importante para a sociedade equatoriana. É a partir daí que a polarização em que o discurso de Correa se baseava se tornou ainda mais intensa. Um populista como ele precisa deixar exposta uma divisão da sociedade, que já existia antes, mas que se acentuou muito quando ele a apontou e a pronunciou. Porque só assim pôde assegurar-se como pai dos pobres, como alguém que está no poder dizendo ser alguém do povo. Algo que ele não é, mas que, com muita inteligência e muita habilidade política, fez com que muitos acreditassem que fosse”, define Vela.
Essa polarização aparece no romance na relação entre Rocío, a dama da sociedade quitenha com quem Federico está casado no começo da história, e sua empregada, a surda Italia, que tem em Correa o “seu presidente, que ainda por cima é lindo”, segundo suas próprias palavras. Já Rocío o vê como uma figura grotesca e torce para que, de fato, o 30-S signifique sua queda do poder, enquanto para Italia, Correa é mesmo um pai dos pobres, pois sem ele a patroa jamais a registraria de acordo com a lei, apesar de já trabalhar para ela havia muitos anos e sua vida, como ela crê, não teria melhorado tanto.
Apesar de ser um crítico de Correa, Vela vê uma transformação social importante ocorrendo no Equador nos últimos tempos, com o aumento de uma classe média e uma ascensão de camadas da população que desafiam um passado aristocrático que sempre marcou o modo como se manejou o poder e as relações pessoais no país, especialmente a partir de Quito.
“Ainda há muito da tradição antiga dos casamentos armados, da ideia de que brancos podem maltratar os pobres mestiços, o que é algo hipócrita numa sociedade em que claramente somos todos misturados, inclusive os que se dizem brancos. Já os tabus dos casamentos em que o homem podia trair, mas que eram mantidos por conveniência e controlados pelos pais, vêm se dissolvendo, de forma lenta, mas vem ocorrendo, por pressão dessas novas camadas e do aumento da população”, afirma.
No romance, Federico, expulso da casta dominante porque seu sogro expõe seu “affair” extraconjugal, interpreta as coisas mais ou menos como o autor da novela. Assim o personagem descreve Quito, uma cidade “onde os sobrenomes pomposos, desde antes de que nascesse a República, se cruzam e se descruzam em uma orgia incestuosa que atira ao mundo centenas de loucos com ares monárquicos e a nostalgia de um sistema feudal em que seus antepassados levantaram algumas de suas misteriosas fortunas”.
Cheia de reviravoltas inesperadas, a história mantém o suspense até o final, e dá espaço para imaginá-la como roteiro de uma minissérie. “Não penso nisso quando escrevo, mas há planos para que se transforme em uma série ou um filme. Gosto de livros com suspense, mas tento não ultrapassar o limite da novela noir. Acho que o livro transita nessa linha”, resume.
Vela segue dedicando-se a contar outras histórias em que investiga o passado recente da América Latina. Seu próximo romance, quase finalizado, também baseado numa história real, é sobre um cubano que esteve próximo aos revolucionários de 1959, mas que depois foi expelido pelos que ficaram com o poder na ilha.
E já investiga para o seguinte, que será sobre outro personagem real, uma espécie de Oskar Schindler equatoriano, um cônsul do país na Suécia que emitiu centenas de passaportes para ajudar judeus a deixarem a Europa e, assim, fugirem do horror nazista. A este silencioso herói _que jamais revelou sua história a familiares e amigos_ Vela chegou por meio de uma senhora polonesa que fora parar no Equador por conta das ações desse cônsul. Ao buscar sua história, se deu conta de que a senhora polonesa não era um caso único e que esse diplomata salvara cerca de 700 vidas, emitindo passaportes equatorianos de forma clandestina.
“Acho que essas histórias têm de ser contadas. Por mais que existam muitos livros sobre o Holocausto, e muitos livros sobre os mortos e desaparecidos na ditadura argentina, precisamos sempre voltar a esses assuntos, para que não se repitam episódios como esses”, conclui o escritor.
Oscar Vela ainda não foi traduzido no Brasil. Atenção, editores!