Guayaquil, esquina entre a história e a literatura
A cidade mais populosa e segunda mais importante do Equador é hoje uma agitada urbe, cheia de opções de entretenimento e lazer, na costa do Pacífico. No recém remodelado “malecón” de Guayaquil tem cinema 3D, roda-gigante, shopping center, espaço para correr e admirar o rio Guayas. Mas também tem um monumento, esse que aparece aí na foto de baixo, bem ao fundo do pessoal fazendo selfies, e que lembra que a cidade tem uma história particular de luta pela independência, que foi sede de um encontro que determinou o futuro das Américas e que, ao mesmo tempo, produziu um mito que alimenta até hoje o imaginário e a literatura do continente.
Foi em Guayaquil que se deu a famosa “entrevista” entre os dois principais libertadores das Américas do domínio espanhol, o argentino José de San Martín (1778-1850) e o venezuelano Simón Bolívar (1783-1830), em julho de 1822.
O encontro, que durou dois dias, não teve testemunhas, nem relatos por escrito deixados por nenhum dos dois, tampouco são conhecidos vazamentos fidedignos da conversa. Basicamente, hoje é considerado impossível saber 100% o que foi dito.
É claro que isso levantou um monte de teorias, e a que virou lugar-comum é a mais superficial e frágil de todas, a de que um Bolívar arrogante e hostil teria acuado um San Martín mais velho e adoecido, assim forçando o general argentino a deixar com ele a tarefa de terminar de libertar a América.
Se ficou no ar essa lacuna histórica, o mistério ao redor do encontro também inspirou a literatura. Mais de um século e meio depois, Jorge Luis Borges (1899-1986) escreveria o conto “Guayaquil”, publicado em “El Informe de Brodie” (1970) que, de uma forma original e intrigante, questionaria a ideia de uma busca da identidade latino-americana.
Mas por que Guayaquil se transformou nesse quebra-cabeças sobre os rumos da América?
Primeiro, a história. San Martín tinha libertado a Argentina, cruzado os Andes e ajudado a libertar o Chile e o Peru. Já Bolívar tinha feito sua parte no que hoje são a Colômbia, a Bolívia, a Venezuela, o Panamá e o Equador.
O projeto de libertação da América encontrava-se, então, num momento de impasse. Enquanto havia pontos de resistência dos realistas espanhóis, principalmente no Peru, era preciso decidir também como essas novas nações seriam governadas. Há certo consenso entre historiadores de que essas teriam sido as principais razões para o encontro.
Portanto, menos do que para decidir quem seria o grande prócer da América, como o estereótipo que se instalou faz crer, a entrevista teria sido muito mais técnica, militar e ideológica. Teriam sido discutidos como eliminar os focos realistas, como governar as novas nações _San Martín queria um príncipe europeu, Bolívar era contra_, e, por fim, uma questão extremamente local: o que fazer com aquele ponto do mapa em que estavam, que tinha se libertado sozinho e virado a Província Livre de Guayaquil? A princípio, esses valentes “costeños” não queriam formar parte nem do Peru nem da Gran Colombia.
O que há de certo é que, embora muitos acreditem que o encontro tenha sido incômodo ou agressivo, Bolívar ofereceu um banquete a seu convidado e o tratou com extrema reverência. Depois, San Martín deixou com Bolívar parte de suas tropas e partiu.
É aí que entra o drama contemporâneo argentino, o que nos leva a Borges e a seu conto “Guayaquil”. Até hoje, os argentinos têm em San Martín seu ícone incontestável. É possível, em algumas épocas, que se elogie Mitre e se odeie Rosas, ou então ao contrário, mas San Martín está sempre acima de qualquer debate, com este ninguém se mete.
Hoje, mas não naquela época. O fato é que, em cartas a amigos, o general se mostrava desiludido com o que via ocorrer nos territórios recém-libertados, a começar pela sua própria Argentina, em que se degolavam unitários e federalistas numa violenta disputa pelo poder.
San Martín ainda tentou voltar a Buenos Aires para ver a mulher que, doente, agonizava. Foi impedido, e quando finalmente conseguiu entrar na cidade, ela havia morrido. O general entristecido partiu então para o exílio na França, onde acabou vivendo seus últimos dias. Ou seja, a versão histórica não bate com a imagem gloriosa e triunfante que hoje os argentinos vendem dele nos livros escolares. É difícil admitir que San Martín passou o fim da vida amargurado com a própria obra.
Talvez se soubéssemos o que foi dito na entrevista de Guayaquil, teríamos mais informações sobre seus sentimentos…
É a partir disso que Borges evoca o encontro em seu conto. Não se trata de uma ficcionalização histórica. A trama se passa na Buenos Aires de seus dias, na qual dois historiadores, um local, outro estrangeiro, debatem à luz de um suposto novo documento que traria novidades sobre o que ocorreu na entrevista. O estrangeiro logo alerta: pode ser um texto apócrifo, e mesmo que seja de Bolívar, “ele pode ter querido enganar seu interlocutor”. Os dois passeiam, então, pelas tantas especulações: teria sido uma “cilada” de Bolívar, um ato de “abnegação” de San Martín, ou mesmo de puro “cansaço”.
Para o crítico e escritor Martín Kohan, o que Borges busca por meio desse duelo (algo bastante borgeano) entre os “avatares contemporâneos” de San Martín e Bolívar é declarar essa busca pela identidade argentina uma quimera impossível e inútil _um tema recorrente em sua obra. O autor de “O Aleph” estaria mostrando que o encontro dos dois próceres era um enigma cuja resolução já não importava mais.
O caso é que isso talvez faça pouca diferença, porque o mito do mistério da entrevista de Guayaquil já está estabelecido, e as questões e diferenças entre os dois Libertadores _e depois, na ficção, entre seus dois “avatares” borgeanos_ são os dilemas da América Latina até hoje: somos um continente ou várias nações? Queremos a democracia ou governos autoritários? Precisamos, mesmo, de próceres e de salvadores da Pátria? Qual Pátria? Queira Borges ou não, o mito de Guayaquil segue vivo.