Desafeto de Borges, Girondo é resgatado em efeméride
Figura de ponta da vanguarda literária argentina dos anos 20, a obra de Oliverio Girondo (1891-1967) permaneceu por muito tempo sob a nuvem do sucesso internacional de Jorge Luis Borges (1899-1986). Até meados dos anos 1980, era mais conhecido como um autor “cult” do que tido como um integrante do primeiro escalão das letras argentinas.
Desde então, porém, essa situação começou a mudar. Sua obra passou a ser resgatada, assim como a de outros contemporâneos do autor de “O Aleph”. Nesta semana, quando se completam 50 anos de sua morte, a Argentina prepara algumas homenagens e comemorações à vida e à obra do autor de “Espantapájaros” (1932).
Enquanto a biblioteca Ricardo Güiraldes exibirá a partir de hoje e até o fim de fevereiro os desenhos (Girondo também ilustrava suas obras) que acompanharam as primeiras edições de seus livros, a Biblioteca Nacional inaugura no dia 1 de fevereiro uma mostra com primeiras edições, fotos, esboços e gravuras, além de objetos relacionados à sua trajetória.
É comum que Girondo seja lembrado como aquele que “roubou” uma namorada de Borges. A história é menos saborosa do que parece. De fato, Borges tinha uma admiração intensa por sua prima, a também escritora Norah Lange. Porém, ao que consta, essa paixão jamais havia sido correspondida. A ironia trágica de tudo isso é que foi o próprio Borges quem apresentou, de forma casual e inocente, Lange, então com 20 anos, a Girondo, 35, quando pediu que ela o acompanhasse a uma homenagem ao escritor Ricardo Güiraldes (1886-1927). Nesse primeiro encontro iniciou-se um longo namoro, depois transformado em casamento, que durou até a morte dele _após uma longa agonia, pois Girondo sofreu acidente de carro em 1961, ficou imobilizado por seis anos e com a saúde deteriorando-se, até falecer.
A história desse triângulo amoroso desde então é repetida de diversas maneiras e de diversos níveis de dramaticidade. A parte boa da releitura que se faz agora dos autores daquela época, porém, é que Norah Lange já não surge apenas como a mulher cujo amor foi disputado por esses dois homens ilustres, e sim como uma autora de voo próprio. Sua obra vem sendo reeditada, tanto sua poesia como suas crônicas e escritos de viagens.
Voltando a Girondo, porém, vale retornar, hoje, a seus escritos para dar-se conta do quão relacionados estavam à uma Buenos Aires em plena ebulição, que se modernizava a passo rápido. Não é toa que seu primeiro livro, “Veinte Poemas Para ser Leídos en el Tranvía”(1922), desde o título já dava conta da mudança dos hábitos de leitura e da aceleração da vida na capital.
Seus poemas não escondiam as origens e a intensa movimentação do autor. Nascido numa família abastada de Buenos Aires, recebeu educação na Inglaterra e na França. Estudou direito e falava vários idiomas. Na Europa, para onde seguiu viajando com frequência mesmo depois de se fixar na Argentina, entrou em contato com as vanguardas e foi muito influenciado pelo chamado “ultraísmo”, tão popular entre os autores do Rio da Prata de então. Na verdade, instalou-se, na época, uma feroz disputa entre grupos de escritores que se diziam ultraístas e os chamados modernistas, que se dava por meio de saraus e discussões em cafés da capital.
A obra de Girondo não foi vasta, consta de apenas seis livros de poesia, mas ficou marcada pela originalidade de temas, por revelar essa Buenos Aires em transformação, pelo sarcasmo e por pitadas de humor negro. A escassez de sua produção, talvez, revela que de fato Girondo preferia, ao contrário do tímido Borges, viver, sair e viajar do que dedicar muitas horas à introspecção necessária à escritura.
Debatia nos cafés, ia a encontros, rodava o mundo. Até mesmo seus lançamentos eram muito mais performáticos que os de Borges. Quando saiu “Espantapájaros”, por exemplo, Girondo fez uma gigantesca escultura de papel maché e a colocou sobre uma carruagem, estacionada à porta de uma loja na calle Florida, onde se vendiam os primeiros exemplares do livro. A Biblioteca Nacional pretende expor essa escultura em breve.
Uma curiosidade que talvez confirme essa diferença entre os dois autores é que os críticos costumam concordar quanto ao fato de que a escrita de Girondo tenha melhorado com a idade, tornando-se mais original e vibrante na fase final da vida, quiçá resultado de sua experiência nos debates e de sua observação intensa do mundo.