O fotógrafo que tira os escritores do sério

Sylvia Colombo
Vargas Llosa capturado pelo fotógrafo (Foto Sylvia Colombo)
Vargas Llosa capturado pelo fotógrafo (Foto Sylvia Colombo)

O argentino Ricardo Piglia, algo encurvado, caminha em direção ao mar de Cartagena, o peruano Vargas Llosa lê à luz de velas _uma referência ao artifício que usava quando era criança e a mãe o obrigava a apagar a luz para dormir_, o cartunista Quino fura um balão com um alfinete, enquanto o argentino Juan Gelman (1930-2014) toca o acordeão com um riso franco estampado no rosto. Já o mexicano Juan Villoro parece rezar diante de uma bola de futebol, a mesma que é chutada pela nicaraguense Gioconda Belli em outra imagem. E a cubana Wendy Guerra, nada mais, nada menos, aparece completamente nua, deitada e olhando para a câmera.

Fotografar escritores fora do universo dos livros vem sendo o principal projeto do fotógrafo argentino Daniel Mordzinski, 56. Há 38 anos sua tarefa é deslocar esses sujeitos ensimesmados e metidos em seus escritórios e quebrar o gelo, fazendo-os posar de modo posado ou descontraído, mas sempre fora do ambiente de trabalho. 

Em cartaz no Centro Cultural Kirchner, em Buenos Aires, até o dia 1 de fevereiro, a exposição “Objetivo Mordzinski – Un Viaje al Corazón de la Literatura Hispanoamericana” reúne 347 imagens, já apelidadas de “fotinskis”, que o fotógrafo captou nas últimas quatro décadas. A entrada é franca e o CCK (www.cck.gob.ar) fica no centro de Buenos Aires, ao lado do Luna Park.

O CCK ocupa hoje o que era a sede dos Correios Argentinos no passado. Trata-se de um gigantesco edifício que conserva seu antigo mobiliário de madeira, e que recebeu, durante a reforma, a inclusão de um imenso auditório dentro de uma estrutura metálica algo circular, conhecido como La Ballena. O resultado é deslumbrante.

Uma pena que, como muita coisa na Argentina, acabou virando foco de uma disputa política. A reforma do edifício e sua transformação em centro cultural se deu durante o governo Cristina Kirchner (2007-2015), e ela resolveu homenagear o marido ao nomear o novo instituto _algo que andou replicando em outras obras pelo país. Quando Mauricio Macri foi eleito, no ano passado, houve uma longa discussão sobre se era conveniente ou não mudar o nome do local, mas acabou prevalecendo certo bom senso de que ficar trocando nomes de monumentos, ícones de notas e de centros culturais apenas porque se entrou em outro ciclo político era algo desgastante e um tanto inútil.

Mas voltemos a Mordzinski. Seu projeto começou de maneira casual, quando estava trabalhando num documentário sobre Jorge Luis Borges (1899-1986). Nota-se, pelo retrato do autor de “O Aleph” na mostra, que o fotógrafo já tinha em mente fixar os escritores fora do ambiente dos livros, mas a imagem de Borges é solene, e ainda não traz o tom mais atrevido e travesso das fotos posteriores de Mordzinski, tiradas com mais espontaneidade e com cenários mais elaborados, senão montados.

 

Sua imagem mais famosa é a que está na abertura da exposição, e traz um Gabriel García Márquez (1927-2014) sentado numa cama, todo de branco a la caribenha, olhar sereno e tranquilo. A seleção não faz distinção entre mortos e vivos, colocados um ao lado do outro como se o que prevalecesse fosse a ideia que sua imagem e sua literatura sobrevivem.

 

Quino, tentando furar um balão (Foto Sylvia Colombo)
Quino, tentando furar um balão (Foto Sylvia Colombo)

 

Mas uma coisa fica muito evidente, enquanto os escritores mais jovens parecem ter acorrido ao fotógrafo, ansiosos por serem fotografados, e os cenários terem sido montados de forma mais intencional, as fotos mais antigas, daqueles que já se foram, guardam o frescor da espontaneidade, como a de Julio Cortázar (1914-1984), que o fotógrafo contatou um pouco a cegas, através da lista telefônica de Paris, em 1982.

É uma pena que o “Atlas Humano” da literatura de Mordzinski se limite apenas a autores hispano-americanos. Quem não gostaria de ver alguns dos escritores brasileiros e estrangeiros também fora de seu contexto habitual? Tomara que esse seja o próximo projeto do fotógrafo-artista. A mostra é grátis, e quem passar por Buenos Aires neste verão não pode perde-la.

 

Juan Villoro e Gioconda Belli, em sua homenagem ao futebol (Foto Sylvia Colombo)
Juan Villoro e Gioconda Belli, em sua homenagem ao futebol (Foto Sylvia Colombo)