“A ideia de que as pessoas devem ser entretidas, e não informadas, é o mal de nosso tempo”, diz Julia Navarro
Julia Navarro, 63, escreve livros imensos e que vendem muito, algo que por si só já a faz uma exceção num mundo cada vez mais dominado pelas leituras ligeiras em pequenas telas. Verdadeiros “page-turners”, seus romances se localizam em diferentes momentos da história, mas não são exatamente romances históricos. A autora prefere defini-los como “uma busca de indivíduos e formas de pensar dentro de determinados contextos”.
Ao todo, seus cinco livros de ficção venderam 5 milhões de cópias. E o mais recente, “História de Un Canalla” (Penguin Random House), já saiu de cara com uma primeira tiragem de 300 mil exemplares. O preferido do público, “Dime Quien Soy”, já está em processo de virar minissérie na Espanha.
Conversei com Julia Navarro, que passou boa parte da vida profissional fazendo jornalismo em distintos meios espanhóis, na Feira do Livro de Guadalajara. Leia, abaixo, a conversa.
Folha – Seus imensos livros são um desafio a uma época em que todos querem ler coisas curtas e rápidas?
Julia Navarro – Acho que os livros não são nem longos nem curtos. Os livros apenas nos contam uma história que pode interessar o leitor ou não. O tamanho de um livro não deve assustar. Há livros que têm 100 páginas e que são intermináveis, e há outros de mil páginas que não queremos que acabe nunca.
Folha – Você está lançando “História de Un Canalla”, que pela primeira vez não faz uma viagem no tempo e se passa nos dias de hoje. Quem é Thomas Spencer, seu protagonista?
Navarro – Um nova-iorquino milionário, que tem uma agência de publicidade, e que é capaz de vender produtos, políticos e ideias sem o menor escrúpulo. É um triunfador dedicado a vender aquilo que os outros querem que ele venda. Pode transformar um indivíduo que ninguém conhece num político vencedor, pode convencer uma população de que o “fracking” será bom para sua região porque criará empregos. E, tudo isso, porque é extremamente habilidoso ao lidar com as ferramentas da sociedade da comunicação.
Folha – Trata-se, portanto, de uma crítica às transformações atuais?
Navarro – Eu sempre digo que as novas ferramentas de comunicação são extraordinárias, são fantásticas, são o futuro que já está aqui. Mas a questão é que vem correndo tanta informação que as pessoas em geral não estão tendo tempo de processar. Eu diria que, com esse romance, meu convite é que os leitores se perguntem sempre três coisas: quem está me contando tal informação, porque está me contando, e o que há detrás dessa pessoa. Vivemos na era em que todo mundo fala qualquer coisa, de uma falta absoluta de pudor, em que se fotografa e compartilha tudo que se faz, em que irresponsavelmente as pessoas compartilham nas redes o que ouvem não se sabe de onde e nem se é verdade.
Folha – Bom, mas esse é um tema super-contemporâneo, com a história das “fake news” (notícias falsas) que teriam ajudado na eleição de Donald Trump nos EUA. Acha que se trata de uma tendência?
Navarro – Todo mundo me pergunta isso, mas eu juro que, quando criei esse personagem, Trump não era nem candidato. Comecei a escrever “História de Un Canalla” há três anos e terminei em 2015. Mas é claro que vejo um paralelismo e a razão é a mesma, trata-se de um fenômeno que já vem ocorrendo há uns anos e agora se intensifica.
O que me moveu inicialmente foi um incômodo com o fato de perceber que nossa sociedade parece não estar mais formando cidadãos críticos. É uma sociedade cada vez mais infantilizada.
Criamos um modo de viver o cotidiano marcado pela banalidade, e na qual os distintos estamentos do poder se empenham em manter as pessoas entretidas. E entreter as pessoas é infantiliza-las.
Folha – Dê um exemplo.
Navarro – O mais claro são as campanhas eleitorais, que são festivas, em que candidatos dançam, fazem performances, e chegamos ao fim da eleição sem conhecer suas políticas, suas ideias para a saúde, a educação, para recuperar as economias e todo o demais. A propaganda política, a construção de candidatos sempre existiu, mas os novos artifícios de comunicação, junto à infantilização da sociedade e a uma crise econômica que gerou desconfiança nos políticos de um modo geral, vêm transformando de forma radical o mundo em que vivemos.
Folha – Foi por uma desilusão com esse estado das coisas que você abandonou o jornalismo?
Navarro – Não, não foi isso. Eu sempre fui jornalista, escrevi livros sobre política e de ensaio jornalístico. Quase que por acidente, um dia decidi tentar escrever um romance, e me saiu “La Hermandad de la Sábana Santa”. A acolhida dos leitores foi extraordinária, na Espanha e no mundo. Então decidi mudar de rumo. Eu acho que não dá para ser jornalista e romancista ao mesmo tempo. Quando se está no jornalismo, este é um trabalho full-time, você vive isso 24 horas por dia e com dedicação plena.
Pelo menos é assim que eu entendo o jornalismo e é assim que eu vivi a minha vida. Quando fui jornalista, nada era mais importante para mim do que a notícia. E creio que é assim que deve ser. Portanto, quando os romances começaram a tomar muito de minha atenção, eu já não me sentia apta a continuar no jornalismo.
Folha – Mas você ainda atua na imprensa por meio de colunas de opinião.
Navarro – Sim, mas esse é outro engano dos nossos tempos. É claro que análise e opinião completam o jornalismo. Mas o jornalismo de verdade é estar lá e ver o que está passando. E hoje vejo muitos jornais abrindo mão disso, substituindo a informação relatada “in loco” pela opinião, pela análise, e creio que esse é um dos elementos da crise que vive o jornalismo. O jornalismo, para mim, é estar ali e contar o que se vê. Se os meios de comunicação já não estão mais oferecendo isso, estão se debilitando.
A jornalista viajou a convite da Feira do Livro de Guadalajara