“Mudanças em Cuba não ocorrem por efeito de um impulso liberalizador, mas sim por subsistência”

Sylvia Colombo
Canek e Che Guevara, neto e avô (Foto Arquivo)
Canek e Che Guevara, neto e avô (Foto Arquivo)

Publiquei neste sábado na Ilustrada uma matéria sobre o livro póstumo de Canek Guevara, o neto de Che que se transformou num crítico da Revolução e preferiu o mundo das letras e da música. Assim como sua mãe, Hilda Guevara, e seu famoso avô, Canek viveu pouco, e morreu no ano passado, aos 40. Conversei o pai, o também ex-militante de esquerda Alberto Sánchez, que é mexicano e havia ido parar em Cuba após sequestrar um avião, ali casou-se com Hilda, filha mais velha do líder revolucionario. Hoje, Sánchez promove o livro do filho e discute o legado daqueles anos. Leia a íntegra da entrevista, aqui.

Folha – Quando o sr. chegou à Cuba e conheceu Hildita, a filha de Che Guevara, pensava que sua vida se vincularia à Revolução a tal ponto?

Alberto Sánchez – É impossível prever um futuro pessoal quando se é um militante revolucionário, e eu cheguei à ilha por acidente. Era o começo dos anos 1970, quando proliferava no México a luta armada. Em 1972, junto com outros companheiros, me ofereci como voluntário para resgatar uma companheira ferida que se encontrava nas mãos da polícia.

Sequestramos um avião para realizar a troca _ameaçamos dizendo que havia uma suposta bomba a bordo, mas que não era nada mais do que o livro “Los Invictos”, de William Faulkner_ e nos dirigimos a Cuba, porque o avião 727 não podia chegar ao Chile diretamente, que era nosso destino original. Cuba seria apenas um ponto de passagem, mas acabei ficando mais tempo. Sete meses depois, conheci Hilda. Nos apaixonamos e, nove meses depois, nasceu Canek, no dia 22 de maio de 1974.

Minha relação com o partido comunista cubano sempre foi extremamente conflitiva, não apenas pela cumplicidade do governo mexicano com o cubano, mas também porque minha organização considerava que esse governo tinha congelado o devenir revolucionário e tinha se convertido numa ditadura, como tinha ocorrido no México e na Rússia.

Ao mesmo tempo, Hilda via que o pensamento de seu pai havia sido reduzido a um mito para uso político do partido. E saímos da ilha para continuar a militância em outros lugares. Essa mitificação do Che que Hilda via, Canek a explicou muito bem num texto intitulado “Canonización Revolucionaria”, publicado no México em 2007.

Folha – Canek contava em suas entrevistas que não se falava de Che Guevara na casa de vocês. Como era sua relação com ele? Era um homem a quem admirava?

Sánchez – Como toda a esquerda mundial, eu também admirava o Che, e continuo admirando-o, não apenas porque foi um político tão distinto, no sentido de que fazia o que dizia e dizia o que pensava, mas também pela ética de confrontar o que considerou seu dever, ainda sendo um alto funcionário do governo.

Sua morte em combate não apenas irradiou um exemplo para a esquerda mundial daquela época, mas também fez com que começasse a se converter num mito suprahumano, depois um ícone cultural, e finalmente num produto de consumo.

Mas Hilda sofria por ser a “filha do Che”, não ser ela mesma, e sim um apêndice do mito. Por isso educamos nossos filhos pequenos não na história política, tampouco na admiração a um homem que poderia se transformar num fardo às suas constas, e sim com nossos valores mais íntimos, baseados na liberdade e na verdade. Nas suas recordações de adolescência, Canek coloca de outro modo. Ele dizia: “meu avô não aparecia nas conversas, mas sempre estava ali”. E creio que Hilda foi verdadeiramente a herdeira do melhor que tinha seu pai.

Folha – Como se sentiu sua família em Cuba? Por que preferiu voltar ao México?

Sánchez – Vivi em Cuba apenas três anos. No México, eu já tinha me inscrito na luta daquela geração de 68 contra o regime opressivo que havia. Mas em Cuba tudo era diferente. O povo dava plena legitimidade a seu governo e a exígua dissidência de esquerda era perseguida, acusada de ser contrarrevolucionária. Então havia uma asfixia de ideias e dos impulsos libertários democráticos que continua até hoje.

Folha – Quando Canek volta a Cuba e começa a ter críticas ao resultado da Revolução, que tipo de conversas o sr. tinha com ele?

Sánchez – Quando Canek cresceu, por conta da própria educação que recebeu, valorizava e defendia muito a liberdade, a própria e em geral. Isso provocou um choque nele quando chegou à ilha e viu como era o autoritarismo do “socialismo real” existente ali.

A essa altura, minhas conversas com ele já não eram conversas com um menino, porque ele já estava crescido e a experiência o fez amadurecer muito até chegar numa posição crítica a esse velho sistema que, por mais que se disfarçasse ideologicamente de socialismo, não era mais que um vulgar capitalismo de Estado, apoiado na integração vertical das organizações de massas, e perseguidor de toda forma cultural que fosse diferente daquela ditada pelo poder.

Folha – Qual lhe parece que será a importância da publicação desse livro póstumo de Canek, especificamente nesse momento em que a ilha passa por grande transformação [devido à reaproximação com os EUA]?

Sánchez – Seu romance retrata a angústia dos homens que buscam a liberdade e, em seu caminho, caem numa rua sem saída. Reflete a frustração e a hipocrisia em que se transformou a Revolução. É uma denúncia do falso discurso do poder que pretende encobrir o drama da vida concreta das pessoas. Um discurso que, por sua inquietante repetitividade, se descobre como um disco riscado.

As atuais transformações, umas aparentes e outras reais, não provêm de algum ânimo liberalizador ou democrático do regime, que está envelhecido, mas sim de uma tentativa de subsistir diante das mudanças irrefreáveis que vêm ocorrendo no mundo desde 1990, incluindo a revolução nas comunicações propiciadas pela internet.

Canek escreveu “33 Revoluções” pensando nos leitores cubanos. Não sei que importância terá para cada um deles o drama descrito, mas espero que saibam valorizar o fato de que Canek também foi filho dessa Revolução, e que expressou de forma livre seus sentimentos.

Folha – A Cuba descrita no livro é asfixiante, mas Canek também a trata como um lugar com o qual tinha um sentimento de pertencimento. O sr. está de acordo?

Sánchez – Para mim, a experiência era distinta que a dele. Eu sou mexicano e sempre fui tratado como estrangeiro na ilha. Mas ao conhecer Cuba, que era tão diferente do meu país, fiquei fascinado e gostei dela porque me apaixonei por Hilda, que era tão cubana, tão argentina e tão peruana ao mesmo tempo. Admirei o povo cubano pelos sacrifícios que fazia para ir adiante, ao mesmo tempo em que me afligia ver a elite comunista convertida em nova classe governante.

Quando Canek chegou a Cuba, em 1986, começava a desmontar-se o “socialismo real” e ele viveu o que se chamou de “período especial”, depois da queda do Muro de Berlim. A quebra econômica de Cuba implicou uma dramática degradação das condições sociais anteriores, e Canek foi testemunha de muitas tentativas de fuga pelo mar.

Mas ele havia nascido ali e sua mãe havia crescido e se educado em Cuba. Portanto era sua pátria, e se, ao final de sua vida, Canek sentia-se um cidadão do mundo, também queria Cuba de forma íntima como queria o México.

Mas gostar da pátria não significa gostar do governo.

Folha – Que repercussão espera que o livro de Canek tenha, dentro e fora de Cuba?

Sánchez – Canek sonhava que seu livro pudesse ser lido em Cuba, mas não sei que repercussões imaginava. Ninguém sabe de que modo, e por quais vias, a literatura possa influir nas ideias. Seria muito soberbo supor que o romance se revelasse como uma espécie de manifesto político. Não é. E agora que Canek é mais amplamente conhecido, já não por ser neto do Che, mas porque editores de muitos países, de culturas muito diferentes, apreciaram sua sensibilidade literária e a expressão de um grande escritor.

E a quem queira conhecer Canek melhor recomendo, amplamente, a leitura de suas crônicas de viagens, um longo périplo de cinco anos por vários países, que ele chamou de “Diário Sem Motocicleta” _em alusão ao filme de Walter Salles, e cujo primeiro tomo sai agora pela editora Pepitas de Calabaza, da Espanha. É um diário em primeira pessoa escrito com essa honestidade e liberdade com as quais Canek viveu até o último de seus dias.