Caparrós revive fundador das letras argentinas
A importância de Esteban Echeverría (1805-1851) na construção do pensamento latino-americano é tão grande que é possível dizer que, sem ele, nem a literatura, nem a história, nem o ensaísmo argentinos seriam os mesmos. Isso porque por meio de suas obras “La Cautiva” (1837) e “El Matadero” (1838), esse poeta e ativista político, nascido em Buenos Aires quando esta ainda era a capital do Vice-Reinado do Rio da Prata, e morto em Montevidéu, Echeverría praticamente escreveu um rascunho do que poderia ser a Argentina _e em muito esse rascunho se assemelha à realidade. De seus versos saíram as primeiras sugestões do que seriam os embates culturais entre passado colonial e mundo moderno pós-independência, a herança hispânica e a nascente cultura do Rio da Prata, e a suposta oposição entre as ideias de “cultura” e “barbárie”, que depois inspirariam o maior intelectual argentino do século 19, Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) a desenvolver sua teoria na qual baseou “Facundo”, sua obra clássica. Também estão em seus versos a intensa violência do contexto de criação da nação que de certo modo ainda ecoa na atualidade.
Mas a vida de Echeverría, cheia de lacunas que historiadores jamais puderam preencher, ficou na memória dos argentinos numa espécie de nebulosa. Sua obra, por sua vez, pouco se republica e sua leitura, em geral, limita-se à lista das obrigações escolares dos argentinos. É por isso que o fato de um grande autor argentino contemporâneo como Martín Caparrós, 58, ter se dedicado a refletir sobre Echeverría é uma grande notícia. Recém-lançado na Espanha, “Echeverría” é uma mescla de romance histórico com ensaio, que joga luzes à Argentina contemporânea.
Depois de lançar duas imponentes obras de não-ficção, “La Cronica” e “El Hambre”, e tendo passado os últimos tempos viajando pelo mundo, Caparrós, 58, retorna ao romance e aos temas argentinos, justamente com uma obra que trata do pioneiro das letras nacionais. O livro enfoca os anos em que Echeverría volta de um período de cinco anos vivendo em Paris, após uma tentativa de suicídio frustrada em Buenos Aires. Embebido pelo romantismo, começa a imaginar as “Argentinas possíveis” num futuro não tão distante. Seria de intensa influência para outros intelectuais de seu tempo, e pode ser considerado como o precursor da chamada “geração de 1837”, composta por ele, Sarmiento, Juan María Gutiérrez e Juan Bautista Alberdi. A preocupação desse grupo, nas palavras do historiador Tulio Halperín Donghi era a de pensar “Uma Nação para o Deserto Argentino”, nome de seu livro clássico, em que a ordem colonial seria substituída por um sistema político mais igualitário e moderno. A peculiaridade dessa geração era o pensar a longo prazo, numa nação que sequer seus netos alcançariam ver, característica que foi sendo substituída por uma reflexão mais imediatista da história nas gerações seguintes.
A questão é que ser um intelectual naqueles tempos era assumir uma postura política que poderia custar o exílio ou a vida. No caso de Echeverría, foi o segundo. De tanto pregar contra o regime autoritário de Juan Manuel de Rosas, terminou tendo de sair do país. Em vez do Chile, escolhido por Sarmiento e Alberdi, escolheu o Uruguai, onde passou o fim de sua vida, lutando contra a tuberculose. Caparrós esclarece que o interesse do livro sempre esteve mais no homem, que perdeu tragicamente os pais cedo, tentou matar-se e agarrou-se, então na tarefa de ser um obsessivo das letras e da identidade platense. A qualidade literária de seus poemas, propriamente, é hoje por alguns contestada, e de fato fica em segundo plano na obra de Caparrós. Das páginas do livro nota-se a formação de uma geração que era antes de tudo anti-hispânica, preferindo ver luzes vindas do romantismo francês e das entranhas do país nascente do que da antiga metrópole.
Por alguma razão curiosa, a edição das obras de Caparrós no Brasil é irregular, alguns romances foram lançados, pouco de suas crônicas e praticamente nada de sua não-ficção. Tomara que “Echeverría” supere essa fronteira.