Sylvia Colombo acompanha e comenta os acontecimentos políticos e culturais da América Latina. Baseada em Buenos Aires, também traz histórias sobre a cidade e dos outros países da região para os quais viaja
Na manhã deste dia 16 de outubro, o papa Francisco canonizou, finalmente, o primeiro santo argentino, o chamado “cura” (padre) Brochero. Na mesma semana em que recebeu o presidente Mauricio Macri, agora de forma mais calorosa que a primeira visita, Bergoglio parece estar sinalizando querer se reaproximar da Argentina, que veio observando com certa distância por conta do redemoinho político causado pelo ano eleitoral de 2015 e a transição para o novo governo _o papa havia dado demonstrações de preferir a candidatura derrotada, a do peronista Daniel Scioli.
Em março deste ano, visitei os lugares onde o “cura” Brochero viveu e pregou, abrindo estradas e supostamente curando doentes nos povoados das lindas montanhas do interior da província de Córdoba. Nas últimas semanas, as atenções da mídia internacional estiveram muito centradas na canonização da polêmica Madre Teresa de Calcutá, mas vale conhecer a trajetória desse religioso que Francisco apontou como primeiro santo argentino. Menos por uma questão religiosa, e mais pelo seu significado político. Afinal, este é um papa bastante interessado em influenciar a sociedade para além do aspecto espiritual. E o “cura” Brochero, olhado de perto, guarda muitas semelhanças com o próprio Bergoglio ou com o modo como Bergoglio quer ser reconhecido: Brochero foi um padre “do povo”, simples, pobre, que se locomovia no lombo de uma mula e que morreu de lepra ao pegar a doença na convivência com os enfermos. É possível que, ao canoniza-lo, Francisco esteja querendo moldar sua própria imagem para a posteridade.
Abaixo, vão os textos que publiquei na Folha após essa viagem ao coração de Córdoba.
‘Cura’ Brochero será o primeiro argentino canonizado
SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL A CÓRDOBA
A viagem da capital da província argentina de Córdoba até Villa Cura Brochero leva três horas de carro por uma estrada tortuosa que atravessa o vale de Traslasierra e sobe as impressionantes Altas Cumbres, conjunto montanhoso mais antigo que a Cordilheira dos Andes e que atinge 2.800 m no pico mais alto.
No caminho, veem-se peregrinos que caminham em família ou sozinhos. Num de seus cumes, o viajante vê, às margens da via, a estátua de um homem envolto por um poncho e montado num cavalo.
À primeira vista, ele pouco difere dos personagens de carne e osso que carregam mercadorias de um vilarejo a outro nessa região algo inóspita, ventosa e fria.
A figura da estátua, porém, é a do responsável por abrir estradas que hoje conectam populações antes isoladas nas alturas de Córdoba.
José Gabriel del Rosario Brochero (1840-1914) não era engenheiro nem político, e sim um padre que, no lombo de sua montaria (às vezes, cavalo, noutras, uma mula chamada Malacara), viajava distribuindo bênçãos e pressionando governantes a construírem a infraestrutura para o desenvolvimento da região, como hospitais e telégrafos.
Nos intervalos, diz a tradição oral, curava doentes. Ajudou na epidemia de cólera na região no final do século 19. Ele morreu de lepra, que contraiu por tomar mate junto aos doentes isolados.
Até os anos 60, o “cura” (padre) Brochero era só mais um santo popular argentino não reconhecido pela igreja. O país tem uma ampla coleção de ícones de devoção religiosa que a Igreja Católica rejeita ou tarda a aceitar, como Gauchito Gil, camponês que lutou na Guerra do Paraguai (1864-70), e o cacique mapuche Namuncurá, venerado na Patagônia e beatificado após longa campanha.
As petições para tornar Brochero santo começaram a ser enviadas ao Vaticano no fim dos anos 60, mas sua beatificação só ocorreu nos anos 90, e travou desde então.
Foi o papa Francisco, seu conterrâneo, que decidiu torná-lo o primeiro santo nascido e morto na Argentina.
CHEIRO DE OVELHA
A cerimônia que marca a entrada de Brochero no rol de santos católicos ocorrerá em Roma em 16 de outubro, seis semanas após a canonização da Madre Teresa de Calcutá.
“Estamos felizes porque é um santo parecido com o papa Francisco, que ia aonde o povo estava, que se misturava, era informal e acreditava no contato direto”, diz à Folha o padre Julio Merediz, um dos que defenderam sua candidatura no Vaticano.
Em Villa Cura Brochero, a população exalta as mesmas qualidades. “Ele fumava e falava ‘caralho’ quando algo não dava certo. Era como mais um homem do povo”, diz a professora Juana Solís.
O próprio papa Francisco, ao referir-se ao contato de Brochero com os camponeses, definiu-o assim: “Era um padre com cheiro de ovelha”.
Dois milagres mais recentes atribuídos a Brochero foram definitivos para a decisão de canonizá-lo. São a recuperação de Camila Brusotti, que teve uma lesão cerebral após apanhar do padrasto, e a de Nicolás Flores, que entrara em estado vegetativo após um acidente de carro.
Os médicos haviam considerado os dois casos irreversíveis, mas ambos estão bem atualmente.
“Foi a fé dos familiares, que pediram a recuperação ao cura Brochero, que os salvou”, diz o padre Merediz.
Como as duas crianças tiveram lesões cerebrais, o Vaticano levou em conta o fato de, ao se exumarem os restos de Brochero, nos anos 70, seu cérebro ter sido encontrado praticamente intacto.
Na quarta-feira de março em que a Folha esteve no Museu Brocheriano, o local recebia estudantes de uma cidade vizinha, Mina Clavero.
“Córdoba sempre foi o coração geográfico da Argentina, agora é também o espiritual”, diz José Encina, peregrino vindo de Jujuy (norte).
A movimentação na cidade de 4.000 habitantes aumentou desde o anúncio da canonização. As festas de janeiro e março, quando se celebram o nascimento e a morte de Brochero, reuniram mais de 150 mil pessoas.
Entre elas, estava o presidente Mauricio Macri, que teve a mais expressiva votação na última eleição presidencial, ano passado, justamente na Província de Córdoba.
Valorizar padres ativistas é estratégia política do papa, diz estudioso
SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL A CÓRDOBA
“Desde que iniciou seu papado, [Jorge Mario] Bergoglio [o papa Francisco] tem potencializado a versão popular da religião católica”, diz à Folha o acadêmico Federico Finchelstein, professor da New School for Social Research, de Nova York.
Portanto, a canonização do “cura” Brochero, figura ativa e de enorme carisma entre a população carente das serras de Córdoba, se encaixa no mesmo contexto de valorização da atuação dos “curas villeros” (“padres das favelas”), com grande atuação social em suas comunidades.
Foi neste ambiente no qual o próprio Francisco se formou e criou um legado na periferia de Buenos Aires.
Numa Argentina em que 78% da população se declara católica, mas apenas 23% vai à missa, o papa tem algumas preocupações imediatas.
Uma delas é conter o avanço dos evangélicos, hoje cerca de 12% da população.
Outra é fazer com que padres de comunidades carentes se tornem mais atuantes diante dos devastadores efeitos da crescente pobreza no país, que, estima-se, hoje atinge 29% da população.
“Bergoglio sempre quis separar a ação social da política partidária. Mas o fato é que ele entende suas ações como políticas, num sentido mais amplo do que as disputas de partidos”, diz Finchelstein.
Hoje, os “curas villeros” se tornaram o eixo de várias comunidades em todo o país.
Em centros urbanos em que a ação do narcotráfico é grande, como Rosário, tornaram-se vitais. “São os únicos a entrar em certas zonas tomadas pelo crime e de fato ajudar a população, numa área em que o Estado não consegue atuar”, contou à Folha o deputado rosarino Carlos Del Frade.
Na ocasião em que a reportagem esteve em Famatina (norte), a população revoltava-se com uma companhia de mineração chinesa que ameaçava contaminar a água local, e era o padre Omar Quinteros que liderava passeatas, convocadas com o badalar dos sinos de sua igreja.
MILAGRO SALA
O estímulo do papa à ação social de religiosos e líderes comunitários de um modo geral, porém, tem causado fricção com o governo argentino.
Recentemente, Francisco enviou um rosário a Milagro Sala, comandante do movimento Tupac Amaru, que está presa por transformar a organização numa espécie de para-Estado em Jujuy.
O gesto foi visto como sinal de intervenção na política argentina. Para a deputada Elisa Carrió, “Bergoglio está empoderando pessoas violentas”.