O que Deus teve a ver com o não à paz?

Sylvia Colombo
Marcha pelo "não" e contra a ministra homossexual Gina Parody (Foto El Espectador)
Marcha pelo “não” e contra a ministra homossexual Gina Parody (Foto El Espectador)

Por incrível que pareça, influenciou muito o voto pelo “não” no plebiscito da paz a interpretação que alguns líderes religiosos católicos e evangélicos fizeram do documento acordado entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, e o modo como transmitiram aos fiéis essa leitura.

Algo desse ambiente religioso anti-acordo já podia ser percebido semanas antes, quando manifestantes foram às ruas protestar contra uma cartilha de orientação sexual para crianças distribuído pelo ministério de Educação. O panfleto, que obedecia padrões internacionais, tinha como objetivo ensinar tolerância a meninos e meninas em idade escolar com relação a diferenças raciais e de preferências sexuais. Porém, muitos pais consideraram que a publicação estimulava uma “ideologia de gênero” e, de certo modo, ensinava às crianças que ser homossexual não era um problema. Irritados, os manifestantes direcionaram seus ataques à então ministra da Educação, Gina Parody, e a atingiram por meio de um aspecto de sua vida pessoal _Parody é homossexual. Já nesse episódio, era possível ver cartazes que relacionavam membros do governo a uma ideologia que consideram “anti-familiar”, e daí partiu-se para a ameaça de votar “não” ao acordo. Esses setores mais conservadores da sociedade também não simpatizam com o fato de o governo do presidente Juan Manuel Santos ter promovido avanços em legislações sobre direitos civis, como o matrimônio gay, a legalização da maconha para uso medicinal e o aborto (ainda em debate no Congresso).

O ex-presidente Álvaro Uribe, principal promotor do “não”, logo percebeu aí um potencial para expandir sua campanha. Existem 10 milhões de evangélicos na Colômbia, enquanto a maioria da população é católica. Associado a alguns pastores, Uribe e seus apoiadores passaram a atacar o acordo de paz naquilo que se referia ao projeto de promover uma sociedade conciliada mais igualitária. Dois trechos específicos do texto deram brecha para esse reclamo dos religiosos. O primeiro era o que dizia que “a implementação do acordo deve ser feita tendo em conta a diversidade de gênero, étnica e cultural, e que se adotem medidas para as populações e os coletivos mais humildes e mais vulneráveis, em especial meninos e meninas, mulheres e pessoas com deficiência”. O outro ponto era o que estipulava: “que se promova a igualdade de gênero, mediante a adoção de medidas específicas para garantir que mulheres e homens participem e se beneficiem em pé de igualdade da implementação do acordo.”

Depois da derrocada da proposta, no último dia 2, por uma diferença mínima de 54 mil votos, membros do governo e da equipe de negociadores vêm quebrando a cabeça para tentar entender onde perderam votos, que pontos do acordo não convenceram a população e o que se pode fazer em termos de retocar o texto, sem assassina-lo, para que possa ser reapresentado ou reutilizado. Pois, foi então que se mediu o impacto da influência desse aspecto religioso. Segundo cálculos dos próprios evangélicos, dos cerca de  4 milhões que declararam ter votado, mais da metade votou “não”, por considerar que o acordo era uma ameaça à “ideia tradicional de família”. Um grupo de representantes da comunidade evangélica já prepara um documento, a ser entregue ao governo no dia 20 de outubro, em que propõe mudanças nesses itens. Segundo Edgar Castaño, presidente da Confederação Evangélica da Colômbia, “o documento deixa vulneráveis os princípios evangélicos da família quando fala de equilibrar os valores das mulheres e desses outros grupos (referindo-se à comunidade LGBT)”.

O governo também avaliou que o apoio do papa Francisco se mostrou débil ao final. Enquanto estavam na fase de negociações, o papa apresentou-se como mediador e estimulou o acordo. Depois, ao ser chamado para integrar uma comissão que escolheria os juízes para o tribunal especial, retirou-se de cena, e com ele calaram-se também outros líderes da Igreja Católica local, a quem Santos também não cai bem. Esses líderes também consideraram o acordo demasiado concessivo às Farc. Nesse caso, a propaganda de Uribe, de que Santos seria um “comunista” e que estaria levando a Colômbia a se transformar num país que desrespeita valores tradicionais de certa forma funcionou.

Um dos principais porta-vozes dessa ideia, o procurador Alejandro Ordóñez, ultra-conservador e uribista, disse a Santos que o acordo deveria ser “purgado de toda a ideologia de gênero”.

Foi por isso que, ao longo da última semana, além de receber lideranças políticas de distintos matizes e grupos de vítimas, Santos também ouviu os religiosos. E acabou prometendo concessões. “Vamos tirar tudo o que ameace a família, a Igreja e vamos buscar uma frase, uma palavra que não cause temor aos que creem.”

Quem não gostou nem um pouco desse recuo do governo foram as Farc. Único lado da negociação que contou com mulheres na mesa de discussões, a guerrilha manifestou que esse não será um item negociável. Victoria Sandino, porta-voz das Farc disse que “não haverá retrocesso nesse ponto. Não só nos surpreendeu esse debate, como nos doeu profundamente porque estão enganando as pessoas com mentiras”, declarou à revista “Semana”. “Não vamos tirar do acordo um item que cuida dos direitos das mulheres e da população LGBT”.

Pois esse é apenas um dos obstáculos que enfrentarão, nas próximas semanas, os negociadores, que ainda buscam um jeito de manter o acordo vivo, remendado ou não, e salva-lo de alguma forma antes de que termine o prazo do cessar-fogo, em 31 de dezembro.

 

 

Marcha pelo "não" em Bogotá (Foto AP)
Marcha pelo “não” em Bogotá (Foto AP)