Assassinato de Letelier completa 40 anos, e ainda deixa dúvidas
Foi num dia 21 de setembro como hoje, há 40 anos, que um dos piores crimes cometidos durante os tempos das ditaduras no Cone Sul ocorreu. O mais chocante é que este não se deu num centro de detenção clandestino ou nas ruas de Buenos Aires, Santiago, Montevidéu, São Paulo ou Assunção _que já eram atrocidades monstruosas em si. Naquela manhã de outono em Washington, capital dos EUA, o carro em que viajavam o ex-diplomata e ativista chileno Orlando Letelier, 44, e sua assistente norte-americana, Ronni Moffit, 25, explodiu, matando a ambos e deixando ferido o marido da jovem.
Letelier havia sido funcionário durante o governo de Salvador Allende, derrubado em 11 de setembro de 1973, no golpe de Estado no palácio de La Moneda, em Santiago, comandado pelo general Augusto Pinochet. Com a ditadura instalada, Letelier foi preso e enviado para uma gélida ilha no Estreito de Magalhães, onde passou alguns meses. Quando conseguiu sair dali, passando pela Venezuela, rumou para os EUA, onde já havia sido embaixador, e se transformou numa dor-de-cabeça constante para Pinochet.
Com muitos contatos na capital norte-americana, Letelier começou a denunciar os abusos de direitos humanos cometidos pelos militares chilenos em palestras, reuniões e em instituições do Estado. Porém, sua vida, como conta o historiador John Dinges em “Assassination on Embassy Row”, não foi fácil ali desde o começo. Sem dinheiro, com quatro filhos, problemas conjugais (havia tido um “affair” na Venezuela e tentava reatar com a esposa) e sofrendo ameaças de morte, ainda assim seguiu lutando para que sua voz continuasse a ser ouvida.
Apesar de todas as suspeitas de que a autoria do crime havia partido de uma ordem de Santiago, a primeira evidência real de que Pinochet estava por trás do ataque veio à luz apenas no ano passado, com o general já morto.
Foi quando o secretário de Estado norte-americano John Kerry entregou à presidente chilena Michelle Bachelet um pacote de documentos até então classificados. Neles, entre outras coisas, havia uma correspondência dos anos 1980 entre o ex-Secretário de Estado, George Shultz, e o então presidente Ronald Reagan, dizendo que a CIA, por fim, havia reunido “provas convincentes” de que Pinochet havia ordenado pessoalmente seu chefe de inteligência, Manuel Contreras, a realizar o ataque, usando agentes da DINA, a polícia secreta chilena.
A família de Letelier crê que os EUA tenham mais evidências para apresentar, e pede que o governo desclassifique mais documentos. De fato, o país do norte ainda tem muito a revelar sobre o que ocorreu naqueles anos e qual sua participação em algumas operações. Um bom sinal da boa vontade da atual administração foi que o presidente Obama tenha entregue um pacote similar de documentos ao governo argentino, que apontam para uma maior conexão entre Henry Kissinger e os generais da ditadura militar local (1976-1983), auxiliando a esclarecer parte do que ocorreu naqueles anos.
Dinges, historiador especializado em ações da Operação Condor, porém, afirma repetidamente que muitas das verdades sobre os abusos cometidos durante as ditaduras latino-americanas precisam surgir dos próprios arquivos militares destes países, ou de testemunhos daqueles que protagonizaram a repressão. “Antes que seja tarde demais”, afirmou, em entrevista à Folha, no ano passado.
Hoje, a presidente Bachelet e a família de Letelier participam de uma homenagem ao ex-diplomata, em Washington. Seria importante que o episódio fosse totalmente esclarecido antes de ser esquecido. Quatro décadas já é tempo demais.