Justiça chega, com atraso, às vítimas de Accomarca

Sylvia Colombo
Familiares de vítimas carregam o que sobrou do povoado de Accomarca (Foto Arquivo)
Familiares de vítimas carregam o que sobrou do povoado de Accomarca (Foto Arquivo)

Demorou 31 anos, mas finalmente saíram, na noite de quarta-feira (31), as sentenças dos responsáveis do Massacre de Accomarca, ocorrido em 14 de agosto de 1985 nesse pequeno povoado da província de Ayacucho, no Peru. A região foi um dos principais focos de ação da guerrilha Sendero Luminoso. Numa época em que os crimes cometidos pelo bando aterrorizavam o Peru, o governo do então presidente Alan García havia dado ordens para que o Exército atuasse com mão-dura na região.

Só que os mortos em Accomarca, como foi simples e rápido provar depois da tragédia, não tinham nada a ver com a guerrilha. Mesmo assim, a patrulha comandada pelo tenente Telmo Hurtado, ao chegar ao local, reuniu os 69 camponeses que aí encontrou. Antes de mais nada, os soldados estupraram as mulheres. Depois, todos foram colocados dentro de duas casas, onde foram metralhados e abandonados com granadas que logo explodiram o local. Entre as vítimas estavam 30 menores de idade (uma das crianças tinha apenas dois anos), 27 mulheres e 12 homens.

Nesta semana, com os familiares esperando do lado de fora do tribunal e grande concentração dos meios locais, finalmente foram lidas as sentenças contra Hurtado (23 anos de prisão) e outros nove membros do Exército que participaram do massacre.

Mortos “por engano” durante a guerra contra o Sendero Luminoso não foram poucos. Durante o fujimorismo, houve pelo menos outros dois casos similares, La Cantuta (1992, onde foram assassinados um professor e nove de seus alunos) e Barrios Altos (1991, com 15 mortos civis, também não relacionados à guerrilha). Se não era por ação direta do Exército, era via esquadrões da morte financiados pelo governo, como o fujimorista Grupo Colina.

Além das tragédias em si, o que impressiona mais é a lentidão da Justiçaperuana em identificar, julgar e sentenciar os responsáveis. Os habitantes de Accomarca, por exemplo, segundo o relato de um jornalista do “La Republica”, costumavam reencenar cenas do julgamento, em que o juiz do caso sempre aparecia dormindo. Uma piada sinistra, mas segundo os familiares, eram assim mesmo as sessões, lentíssimas e interrompidas por qualquer pretexto. Enquanto houve adiamentos de pelo menos 30 das 250 audiências, a Justiça aceitava a ausência dos militares sempre que se declaravam doentes, e isso foi prática bastante comum nessas três décadas.

Grupos de direitos humanos afirmam que a demora não é apenas a típica da Justiça local peruana, mas sim agravada pela negligência com relação às vítimas, gente humilde proveniente de regiões afastadas do interior, em sua maioria de origem indígena _muitos se expressam apenas em quéchua, por exemplo. Após o massacre, Hurtado e outros militares envolvidos foram anistiados por Fujimori, alguns foram para os EUA. Apenas recentemente a Justiça mandou extradita-los para o julgamento.

A defesa dos militares argumentou que eles apenas haviam cumprido ordens. Hurtado disse que tinha apenas 23 anos e acabara de entrar no Exército, “fui para onde me mandaram, para lutar por algo que acreditava que era o correto”, disse, em entrevista a um meio local. Questionado sobre porque considerou que um garoto de 2 anos poderia ser um terrorista, porém, saiu-se com a resposta de que a guerrilha “torcia as crianças desde muito cedo”.

A guerra entre o Exército, as milícias camponesas e o Sendero Luminoso fez mais de 70 mil vítimas no Peru. É uma ferida enorme e ainda aberta que, depois do período fujimorista (1990-2000), poucos governos quiseram sanar de verdade. Para eles e para a sociedade, parecia que era melhor fechar os olhos e apenas convencer-se de que o pesadelo das bombas, dos atentados e do toque de recolher havia passado. Só que feridas abertas seguem causando dano se não são sanadas, pelo menos com o esclarecimento da verdade. No interior do país, por exemplo, resquícios do Sendero ainda resistem e seguem realizando atentados esporádicos que vitimam camponeses inocentes. O Exército, se não for repreendido pelos abusos do passado, seguirá cometendo os mesmos abusos no presente. Ambas as coisas deveriam deixar de acontecer.

O início de um novo governo, do centro-direitista Pedro Pablo Kuczynski, é uma boa oportunidade para colocar mais ênfase na investigação dos responsáveis por sequestros, mortes e massacres do período (1980-1999). Ao menos para que a história desse período terrível seja escrita e que as novas gerações conheçam a verdade daquela época. Esforços como os do Centro de Memória Histórica da Colômbia, um órgão criado pelo governo para esclarecer os fatos ocorridos durante a guerra contra as Farc, seriam já um bom começo. Já a ação da Justiça deveria ser mais rápida, porque nem todas as vítimas podem esperar trinta anos por uma reparação.