Gombrowicz ainda move legião de fãs na Argentina
Muita coisa na história de Witold Gombrowicz (1904-1969) soa como mito e baseia-se numa história oral um pouco difícil de comprovar, mas ainda assim sua consistente obra, produzida entre a Argentina e a Polônia, tem hoje o respeito internacional que o mesmo não recebeu em vida _está traduzida para mais de 20 idiomas. Se em seu país-natal o respeito a seu trabalho tem tom mais formal, na Argentina Gombrowicz é um autor cult, reverenciado principalmente por escritores jovens.
Alguns eventos vêm comemorando sua obra, desde que a editora El Cuenco del Plata começou a reeditar seus livros. Desde 2014, a Biblioteca Witold Gombrowicz, lançada pelo selo, trouxe em nova roupagem seu livro mais famoso, “Ferdydurke”. Além dele, vieram ao mercado novas edições de “Bacacay”, “Cosmos” e “Diario Argentino”. O próximo a sair é “Peregrinaciones Argentinas”.
Nesta próxima terça (16) haverá um evento no Teatro del Globo (rua Marcelo T. de Alvear, 1155), em Buenos Aires, chamado “Contra Los Escritores”, que será uma performance imitando um programa televisivo, organizado por leitores-autores-fãs. Na mesma ocasião, se lançará mais um livro de homenagem, “El Fantasma de Gombrowicz Recorre la Argentina”, com 37 textos de novos escritores para celebrar esse autor que transitava entre a filosofia, o teatro, a literatura memorialista e outros gêneros.
Mas por que sua história real se confunde com a lenda? Primeiro, talvez por culpa do próprio escritor, que escolheu esconder-se da elite literária européia e conviver com o submundo cultural de Buenos Aires, segundo, porque sua história pessoal é marcada por alguns infortúnios que não parecem ser obra do acaso, e sim algo que o mesmo de certa forma buscou para manter distância de certos círculos _familiares, nacionais, políticos e artísticos.
Comecemos por sua chegada à Argentina. Sabe-se que esse filho de uma família abastada e aristocrática _diz-se que tinha um título de conde_, que havia estudado em Varsóvia e já tinha livros publicados na Polônia, tomou um barco para a América do Sul poucas semanas antes de começar a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Quando soube do que se vivia na Europa, decidiu ficar um pouco mais de tempo na capital argentina, pensando que o conflito duraria apenas alguns meses. Acabou ficando por 24 anos. Conta-se que não tinha mais do que US$ 200 no bolso no começo, e que tampouco falava espanhol.
Encontrou trabalho no Banco da Polônia e começou a atrair a atenção de um grupo de escritores jovens que frequentavam o café Rex para ouvi-lo falar de literatura. Desbocado, chamava os novos amigos de “criollitos”, tinha uma vida desregrada e era bissexual _pelo que relatam os que o conheceram, teve vários amantes de ambos os sexos. Seus diários, publicados mais tarde na Polônia e cujo trecho relativo à Argentina (“Diário Argentino”) sai agora no país-vizinho, contam um pouco de sua passagem pelo sul. Na introdução desse volume, Gombrowicz diz que não havia querido meter-se nos temas que pareciam tão candentes na vida política daquela época (e que ainda hoje soam extremamente atuais) _a polarização de ideias, os discursos sobre as guerras do capitalismo internacional, a opressão da oligarquia nacional_ e que sua literatura era privada. Avisa o leitor que não verá muito da Argentina nas páginas do livro, mas do que ele viveu ali e o que era sua questão principal ao escrever aquelas páginas: “Não, não minto e não exagero ao dizer que, até hoje, não consegui desprender-me da Argentina”.
Aos poucos, Gombrowicz foi sendo chamado a participar da vida literária do país. Vários dos grandes autores argentinos de então acabaram incorporando-o ao panteão nacional. O próprio Ernesto Sábato (1911-2011) dizia que a aceitação da literatura de Gombrowicz na Argentina ocorria porque este país se parecia muito à Polônia, por estarem os dois distantes de centros europeus importantes. O fato é que o polonês passou a ser uma figura frequente nos debates e encontros literários nos cafés do centro de Buenos Aires.
Uma das passagens mais curiosas foi a tentativa de traduzir seu texto mais importante, o “Ferdydurke” (escrito em 1937) ao espanhol. Como não havia tradutores do polonês profissionais à mão, a tradução foi feita por uma espécie de coletivo de autores argentinos e o que saiu foi uma versão um pouco estranha, desviada da obra original, talvez uma nova obra.
O episódio que encerra sua passagem por Buenos Aires também tem algo de mítico. Reza a lenda que, do barco, ao despedir-se dos amigos, naquele ano de 1963, Gombrowicz havia gritado, enquanto a embarcação se afastava do cais: “Maten a Borges!”. Com o tempo, a mensagem entendeu-se como a necessidade dos novos autores de sair da sombra do principal escritor argentino. Ainda que não se tenha muita certeza. Gombrowicz nunca explicou o que teria querido dizer, mas falava, até sua morte, em voltar a Argentina, algo que não pôde fazer, por conta da deterioração de sua saúde.