Seguindo a rota narco da Argentina ao México

Sylvia Colombo
A jornalista mexicana Cecilia González (Foto Divulgação)
A jornalista mexicana Cecilia González (Foto Divulgação)

Na introdução de “Narcosur” (Marea, 2013), a jornalista mexicana Cecilia González, correspondente da agência Notimex na Argentina desde 2002, relata que levou um susto quando seus editores pediram, lá do México, em 2008, que ela averiguasse uma questão relacionada ao narcotráfico na Argentina. Naquele ano, em meio a um torvelinho político que contrapunha o governo kirchnerista e os ruralistas _caso que monopolizou os noticiários_ também ocorreu um fato não menos importante, mas que passou meio despercebido pelos meios e a opinião pública. Nos arredores de Buenos Aires, a polícia encontrou, pela primeira vez, um laboratório de drogas sintéticas operado por um grupo de mexicanos e argentinos.

Curiosamente, aconteceu uma coisa parecida comigo quando, ao chegar ao país com a mesma função, em 2011, passei a ler com cada vez mais frequência o quanto de violência, cifras, lavagem de dinheiro e trânsito de “drug lords” havia no país-vizinho. Certamente no Brasil, e seguramente para a maior parte do mundo, a Argentina ainda não era vista como um “Estado narco”, nem de longe era associada à violência como a que vemos, infelizmente, no México, com suas cenas terríveis de fossas coletivas e degolamentos em massa na luta dos cartéis por território. Para o imaginário do brasileiro comum, a Argentina é um destino turístico pacífico, com uma capital que _insistem os turistas_ “parece a Europa” e um lugar divertido para comprar livros, alfajores e jaquetas de couro de boa qualidade. Infelizmente, a realidade é um pouco mais cinzenta, e o fato de que a Argentina vem se transformando, desde o declínio dos grandes cartéis colombianos nos anos 90, em uma rota importante do narcotráfico latino-americano, não pode mais ser escondida.

Prova disso é que foi tema na agenda dos principais candidatos à Presidência no ano passado e é mencionado pelos argentinos nas ruas das grandes cidades. Eu, de minha parte, àquela época, fiz apenas um par de reportagens centradas em como se configurava o comércio de drogas ilícitas em Buenos Aires e, depois, no ano passado, uma incursão ao mundo narco de Rosario.

Mas Cecilia González, também depois de superado o ceticismo inicial, foi muito mais longe. E o resultado disso hoje são dois livros. Além do primeiro, mencionado acima, agora chega às livrarias de Buenos Aires sua segunda parte “Narcofugas”. Ambos cobrem os distintos passos que marcaram a transição da Argentina de “país de trânsito” para “país produtor”, principalmente de drogas sintéticas. Da chegada dos estrangeiros, das pistas de pouso clandestinas no norte do país, das montagens dos laboratórios, das rotas por mar e ar desde o Sul até o Norte, tudo foi investigado à fundo. Mais importante, e especialmente no caso do segundo livro, está explicado o contexto político que permitiu que tal indústria e tal rota passassem a funcionar de modo tão frequente e rentável.

O elemento no qual González põe mais o foco é a efedrina, produzida no país-vizinho e levada para os cartéis mexicanos. A efedrina pode ser usada para produzir dietéticos, energéticos e outros tipos de medicamentos, mas também para a confecção de drogas sintéticas. Em muitas partes do mundo, sua produção e distribuição são altamente reguladas. Quando o governo mexicano implementou uma legislação restritiva à sua produção lá, os traficantes encontraram na Argentina, com leis muito mais flexíveis, um território fértil para receber os novos laboratórios. A atividade deslanchou durante os anos do kirchnerismo (2003-2015).

Peña Nieto (México) e Mauricio Macri (Argentina), em encontro em Buenos Aires (Foto Reuters)
Peña Nieto (México) e Mauricio Macri (Argentina), em encontro em Buenos Aires (Foto Reuters)

Na última campanha eleitoral, o candidato kirchnerista ao governo da Província de Buenos Aires, Aníbal Fernández, foi relacionado ao tráfico de efedrina no país. Até agora, o processo contra ele avançou pouco, embora os meios de comunicação anti-kirchneristas tenham explorado muito as supostas evidências que vêm se acumulando. Se é Fernández ou não o chefe do bando, a Justiça determinará. Na verdade, importa mais é perceber que, nos últimos anos, de fato, houve a criação de um ambiente político propício para que os laboratórios e o comércio florescessem. Sobre essa relação promíscua entre poder político e mundo narco, González trata muito em ambos os livros. E aqui é importante reforçar que, em seu país, tal promiscuidade hoje é tão evidente que muitos líderes regionais já não se elegem sem dinheiro narco nas campanhas e que os principais crimes e matanças envolvem não apenas o crime organizado mas a complacência de autoridades locais. O caso mais exemplar disso é o do desaparecimento dos 43 estudantes de Ayotzinapa, Guerrero.

O atual presidente argentino, Mauricio Macri, assim como o candidato que ele derrotou, o peronista Daniel Scioli, pregam uma política de “tolerância zero” e de combate bélico ao narcotráfico. Em vez de inspirar-se no vizinho Uruguai, que pelo menos vem experimentando uma solução alternativa, liberando e regulando a distribuição da maconha, Macri prefere o discurso da mão-dura, que mais agrada a seu eleitorado e ao argentino médio nesse momento.

Num lapso que depois teve de explicar, pois criou um problema diplomático, o papa argentino Francisco havia dito que a Argentina estava “se mexicanizando”. Como o próprio México já vem sentindo que dez anos de enfrentamento bélico com o crime organizado vem causando muito mais mortes e destruição (80 mil vítimas fatais e mais de 100 mil desaparecidos) do que soluções, seria importante que o governo argentino em vez de apostar no discurso da “tolerância zero” buscasse pelo menos se abrir para outras alternativas. Discutir a legalização parcial da maconha, por exemplo, ou promover um debate sobre redução de danos, além combater a corrupção que vincula líderes regionais e o narco poderiam abrir um caminho promissor.

Em entrevista recente sobre seu trabalho, González apontou a dubiedade do discurso oficial argentino. “Enquanto na ONU a chanceler Susana Malcorra fala de drogas apoiada num discurso de direitos humanos, internamente, o ministério de Defesa segue com o discurso repressivo e proibicionista.”

Mauricio Macri e seu par, Enrique Peña Nieto se encontraram na semana passada em Buenos Aires. Tomara que esse tenha sido um dos tópicos tratados a sério e que a troca de experiências ilumine a ambos os líderes.

Se precisarem de biografia sobre o assunto, os dois volumes de Cecilia González certamente os ajudarão. Antes de terminar esse post, queria apenas reforçar que a nobre colega o dedicou aos jornalistas mexicanos que vêm morrendo às pencas em seu país, tentando dar visibilidade ao que vem ocorrendo. Certamente, para quem está na frente de batalha, no México, esse estímulo é valioso para que não desistam do jornalismo, nesse caso tão necessário.