A difícil reconciliação da Argentina com seus militares
Todos os governos argentinos pós-ditadura (1976-1983) tiveram de lidar com o problema. Cada um à sua maneira, porém, nenhum o resolveu de fato. A questão é: qual deve ser o papel das Forças Armadas na Argentina, país na qual estas protagonizaram um regime que levou à desaparição de pelo menos 20 mil pessoas?
O primeiro presidente eleito de forma democrática, Raúl Alfonsín, foi quem mais sentiu a ameaça de um retorno dos tanques às ruas, com as sublevações de 1987 e 1988. Depois de impulsar o julgamento dos envolvidos nos crimes da repressão, teve de capitular às pressões, e promulgou as leis de Obediência Devida e Ponto Final, isentando de culpa os que agiram obedecendo a ordens superiores. Do início ao fim de seu governo, porém, conviveu com a possibilidade de que os fardados o depusessem como já haviam feito noutros momentos do século 20.
Seus dois sucessores, Carlos Menem e Fernando De la Rúa, mantiveram relações discretas com as Forças Armadas. Já os Kirchner, tanto Néstor como Cristina, assumiram posições mais ofensivas. Primeiro derrubando indultos e anistias e impulsando novamente julgamentos dos casos de repressão dos anos 70, depois evitando comparecer a comemorações pátrias junto a comandantes. Em vez de desfiles militares, ambos preferiam celebrações mais populares nos feriados nacionais. Mais do que isso, limitaram o orçamento das Forças Armadas, que desde então vêm reclamando não terem dinheiro suficiente para renovar armamento e promover o devido treinamento das novas gerações de soldados.
Desde que assumiu o governo em dezembro do ano passado, Mauricio Macri tem mantido o discurso conciliador com o qual venceu a eleição. A prática, porém, impõe dificuldades, e encontrar o novo papel do Exército argentino no Estado é uma de suas árduas tarefas. A nova geração de militares, de modo geral, não quer identificar-se com os abusos de poder do passado, mas vive ainda sob essa sombra, enquanto alguns personagens daquele passado terrível ainda seguem na ativa.
O governo vem fazendo gestos de aproximação e rediscutindo orçamentos e prioridades _como reforçar o controle das fronteiras, engaja-los na luta contra o narcotráfico e em outras ações. A ideia, diz o governo, é tentar deixar para trás o legado negativo daquele período e deixar que a Justiça faça seu trabalho, julgando os que cometeram abuso.
Foi com esse intuito que a administração macrista convidou mais de 6 mil oficiais para uma grande comemoração do Bicentenário da Independência, no último dia 9 de julho. Foram convocados a participar da festa atuais integrantes das Forças Armadas, ex-militares e ex-combatentes da Guerra das Malvinas (1982).
Mas parece que Macri adivinhou que o encontro seria, no mínimo, uma saia-justa. Pela manhã, escreveu um tuíte dizendo-se “extenuado” pela recente viagem à Europa e, com isso, justificando que não iria à comemoração, embora recomendasse que a população, sim, comparecesse. O comentário foi tão criticado nas redes sociais que seus assessores o instaram a mudar de ideia.
Só que as forças não são hoje um bloco único. Principalmente entre os ex-combatentes das Malvinas há muitas divisões. Existem grupos que estão processando até hoje seus superiores pelos maus-tratos recebidos durante o conflito e por supostos casos de tortura de recrutas. Outros ainda condenam os ex-generais por terem-nos mandado a essa guerra que desde o princípio soava perdida. Há, também, um terceiro grupo que veste a camisa e se orgulha da tentativa patriótica de ocupar as ilhas. Desde 1982 esses grupos se opõem entre si. Ou seja, não havia muita boa vontade para que todos caminhassem juntos, e de fato muitos se ausentaram.
Ainda assim, a multidão presente aplaudiu os veteranos presentes e o tom seguiu festivo até que, em meio ao desfile, surge todo fardado a figura algo esquecida da memória de muitos de Aldo Rico _justamente um dos comandantes das sublevações contra o governo democrático de Raúl Alfonsín. Aos 73, se disse orgulhoso de estar ali mesmo sem ter sido chamado, porque ao longo de sua carreira militar havia “cumprido seu dever”.
A imagem do ex-golpista fardado saudando a multidão chocou os presentes, viralizou nas redes e virou assunto dos meios durante toda a semana. O atual ministro da Defensa, Julio Martínez, que é justamente do partido de Alfonsín, a União Cívica Radical (parte da base de apoio de Macri), apressou-se a dizer que Rico não havia sido convidado e a lamentar que sua presença tenha ofuscado o esforço de conciliação que gostaria que marcasse o desfile.
“Ninguém está festejando que Aldo Rico esteja aqui”, disse Martínez. “O governo não o convidou, ele veio como ex-combatente nas Malvinas. Lamento que tudo o que vínhamos fazendo desapareça e a notícia do dia seja a presença de Aldo Rico”, declarou aos jornais locais.
Numa semana difícil para o governo, em que houve protestos em Buenos Aires pelos aumentos de mais de 700% nas tarifas de gás, Macri ainda teve de lidar com esse desconforto com os fardados. Desconforto que apenas será solucionado se o presidente desenhar uma política mais clara para a relação do Estado com as Forças Armadas. Se um conflito armado com outros países da região parece algo distante da realidade, de que estas devem ocupar-se efetivamente nos dias de hoje?
Por outro lado, a nova geração de oficiais deveria mostrar de modo mais claro que nada tem a ver com quem cometeu abusos na ditadura. Andar ao lado de Aldo Rico, um general que comandou rebelião contra um governo democrático e apoiou a iniciativa dos ditadores de ocupar as Malvinas, definitivamente não é o melhor dos sinais a mandar à sociedade.