“Há um despertar da consciência na América Central”, diz Sergio Ramírez
A América Central está em ebulição. Por um lado, há um aumento da violência relacionada a uma sangrenta briga de gangues e ao narcotráfico que faz lembrar os sombrios tempos das guerras civis na região. Por outro, porém, há uma espécie de “despertar cidadão”, que tem levado multidões às ruas contra a corrupção e a ineficiência dos Estados. Alguns analistas já falam em uma “primavera democrática”, tomando país por país.
É nesse continente distante dos interesses brasileiros, visto como área de transição entre dois hemisférios ou apenas vendido como destino turístico por suas praias paradisíacas, que vem surgindo também várias manifestações culturais que espelham esse novo momento regional.
Conversei com o escritor nicaraguense Sérgio Ramírez, o principal intelectual da região, que entre 23 e 28 de maio recebe em Managua mais de 70 escritores de 17 países no festival Centroamerica Cuenta, e que pretende inserir de vez a zona no debate cultural contemporâneo. Estão na programação, entre outros, o espanhol Javier Cervas, o peruano Santiago Roncagliolo e o colombiano Alberto Salcedo Ramos. O festival homenageará os 400 anos da morte de Cervantes e o centenário do falecimento do nicaraguense Rubén Darío.
Ramírez, 73, foi vice-presidente entre 1985-1990 e integrou, nos anos 1970, um grupo de intelectuais que apoiou a Frente Sandinista de Liberação Nacional contra a ditadura de Anastasio Somoza.
Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista, feita por telefone, desde Managua.
Folha – O que está acontecendo, culturalmente, na América Central?
Sergio Ramírez – Nos últimos quatro anos, temos visto a América Central inserir-se no mapa cultural das Américas. Creio que até hoje sempre foi uma região vista com uma certa uniformidade geográfica, política, mas cujas distinções culturais não eram bem percebidas. E creio que isso está mudando.
Folha – Como surgiu o Centroamerica Cuenta?
Ramírez – Primeiro como uma tentativa de construir um espaço de encontro para os escritores centro-americanos. Mas o interesse passou a extrapolar a região e nesta quarta edição teremos um festival de primeiro nível, não será algo provinciano. Temos mais de 70 convidados de 17 países, com leituras e eventos ocorrendo em 8 centros culturais em Managua, 7 oficinas literárias por nomes de peso, além de mostras de fotografia e cinema.
Há uma linha geral, fornecida pelo lema: “A memória que nos une”, não só pela literatura, mas também pela história. A nossa não é uma história fácil, é uma história de muita luta e de muita violência.
Folha – Este, inclusive, é um momento delicado quanto a isso, o tema estará presente nas discussões do festival?
Ramírez – A realidade sempre foi muito conflitiva na América Central. Sempre tivemos países divididos, grupos enfrentados, desigualdade, contrastes, pobreza e violência. Hoje há um problema imenso que são os conflitos entre as gangues, que estão fazendo vítimas em vários países, como El Salvador e Honduras. Além do narcotráfico e da corrupção.
Folha – Por outro lado, fala-se de um “despertar da cidadania”, de uma mobilização por uma nova política. A revista britânica “The Economist” fala de uma “primavera da América Central”. Está de acordo?
Ramírez – Sim, há um despertar de consciência gerado por mais intercâmbio de informações, e mais mobilizações populares espontâneas em torno de casos graves. Há assuntos chamando muita atenção e causando intenso debate, principalmente via redes sociais. O dos Panamá Papers (que revelou que o país abriga várias empresas “offshore” ilícitas) é um deles, o dos ambientalistas perseguidos é outro. Causou muita mobilização, por exemplo, a morte de Berta Cáceres (ambienta hondurenha assassinada em maio). Outro, a mobilização dos guatemaltecos contra a corrupção, que culminou na caída do governo de Otto Pérez Molina, no ano passado, foi outro desses episódios.
Esses casos reforçam que há um despertar da cidadania na América Central.
Folha – E como vê a literatura nesse cenário?
Ramírez – O papel da literatura é justamente o de estar presente em situações como essa. Não é por ser uma região violenta que não devemos fazer aqui um festival de literatura, mas justamente por causa disso. A literatura não serve para que façamos uma maquiagem na realidade, ao contrário, está aí para expor e refletir sobre esses assuntos.
Folha – Na Nicarágua, qual tem sido o principal tema social e político?
Ramírez – Aqui o assunto mais momentoso tem sido o polêmico canal que se pretende construir para competir com o Canal do Panamá (o governo nicaraguense ofereceu a concessão para a construção para uma empresa chinesa). A resposta tem sido muito expressiva, e parte principalmente das populações da região que será afetada (o canal ameaça o Lago Nicaragua, que abastece milhares de pessoas, além do fato de que sua construção deslocaria comunidades inteiras).
Há uma grande mobilização no país, de camponeses no interior, mas também de grupos urbanos, em torno dessa questão, que entra dentro de um questionamento a vários aspectos do governo de Daniel Ortega.
Por outro lado, não queremos que o festival seja inteiramente tomado por questões políticas. Seu assunto será a literatura em primeiro plano, será uma festa literária, ainda que não seja possível nem desejável descola-la desses temas tão importantes.