“Não vemos o exemplo do Brasil iluminando a América Latina, muito pelo contrário”, diz Myriam Bregman
Atual deputada e ex-candidata à vice-presidência pela Frente de Esquerda nas últimas eleições argentinas, Myriam Bregman, 44, tem sido voz dissonante no Congresso ao pedir que o governo do país-vizinho se posicione com mais ênfase com relação à atual crise brasileira. Para sua agrupação política, Dilma Rousseff cometeu graves erros, mas que não justificam o que chama de “golpe institucional” em curso, e que segue o padrão de casos anteriores na América Latina, como o do Paraguai. Além de ter tido uma discussão com o chefe de gabinete de Mauricio Macri, Marcos Peña, Bregman foi uma das idealizadoras de um ato público contra o “impeachment”, na última semana, em Buenos Aires, e tentou instalar um discussão sobre o caso na Câmara de Deputados (vídeo abaixo).
A aliança de partidos de esquerda que representa é crítica aos governos que chamam de “pós-neoliberais” _também conhecidos por outros como “bolivarianos” (os do PT, de Evo Morales, Rafael Correa, o chavismo e outros). Para essa frente de esquerda, tais governos não podem se identificar com uma esquerda verdadeira, uma vez que, no poder, seguiram aplicando ajustes e políticas neoliberais, mantendo um discurso demagógico. Extremamente críticos ao kirchnerismo, por exemplo, denunciaram seus casos de corrupção e se negaram a apoiar, no segundo turno, o candidato Daniel Scioli, mesmo que seu respaldo pudesse ter evitado a vitória do direitista Mauricio Macri. Agora, a Frente de Esquerda apoia os grupos que se manifestam contra o atual governo, entre outras coisas por conta da recente disparada da inflação (mais de 40%), das demissões coletivas no setor estatal e do pronunciado aumento dos índices de pobreza.
Estive com Bregman, que é advogada e participou dos julgamentos contra crimes de direitos humanos nos anos 1970, em seu gabinete no Congresso argentino, na semana passada. Aqui, trechos da nossa conversa:
Folha – Qual sua opinião sobre o processo de “impeachment” que está em andamento no Brasil?
Bregman – Trata-se de um processo de características políticas. Tive recentemente uma discussão com Marcos Peña [chefe de gabinete de Mauricio Macri], cobrando uma ação do governo argentino. Ele me respondeu que a questão do Brasil era um processo que estava sendo levado pela via institucional, e que portanto não os preocupava como preocupava o caso da Venezuela. O que lhe respondi foi, justamente, que, sim, o “impeachment” brasileiro se está fazendo pela via institucional e é por isso que nós o chamamos de “golpe institucional”. Entendemos que se está tentando tirar um governo por conta de uma avaliação política, e não por um motivo jurídico. Não há evidências suficientes de corrupção para destituir a presidente Dilma Rousseff. Por isso perguntei a Peña, que, enquanto eu falava, olhava para o teto, o que aconteceria se todos os governantes da Argentina e os presidentes da América Latina fossem julgados por um aspecto de responsabilidade fiscal, igual ao que está acontecendo com Dilma. Não houve resposta. Claro, todos sabem que é uma prática comum. Prática que nós não apoiamos, porque nossa proposta é mais profunda e passa por substituir o estado capitalista.
Nós denunciamos a corrupção no Brasil como denunciamos a corrupção na Argentina. Aqui, denunciamos o governo kirchnerista e denunciamos agora, a gestão Macri, que já acumula casos de corrupção, como as contas no exterior de altos funcionários, as denúncias dos Panamá Papers [que revelaram envolvimento de Macri com empresas “offshore”]. Ainda assim, não estamos de acordo com o “impeachment” que está sendo levado adiante no Brasil porque ele está baseado, eminentemente, em questões políticas. E uma demonstração disso se dará caso triunfe esse processo, pois sabemos que quem sairá fortalecido dele serão grupos ainda mais corruptos que o PT.
Observando de forma mais regional, vemos o fortalecimento da direita na América Latina, em alguns casos pelas urnas, como aqui na Argentina, outros por essa via golpista. Trata-se de uma resposta aos governos “pós-neoliberais”, como o kirchnerismo, o governo de Evo Morales, etc. Esses governos, quando surgiram, vieram dar uma resposta a uma situação de grande insatisfação das massas. Mas nós nunca os consideramos governos aos quais deveríamos apoiar. Reconhecemos que foram governos que tiveram diálogo com os trabalhadores, porque estes vinham de sofrer as consequências das políticas neoliberais dos anos 90, mas, de fato, não resolveram seus problemas. No caso da Argentina, por exemplo, o kirchnerismo não reverteu as privatizações da era Menem (1989-1999), algo que deveria ter feito, pois essas privatizações foram extremamente destrutivas para a Argentina.
Nós defendemos que os juízes sejam eleitos por voto popular. No Brasil, um juiz que ninguém votou ou elegeu, Sergio Moro, está avançando contra Dilma e Lula, que por outro lado são atacados também pelo Congresso, que se move por razões políticas. Nada bom pode surgir disso. E acreditamos que Dilma e Lula também estão se equivocando ao não conclamar a mobilização das massas, evitando que existam expressões populares que enfrentem a direita. A aposta de Dilma e Lula tem sido apenas a de negociar com deputados e senadores, o que está justamente fortalecendo esse setor que quer derruba-los.
Folha – Por que acredita que o caso brasileiro se relaciona com outros da região?
Bregman – Acho que o caso do Paraguai, e agora o do Brasil, vêm marcando um caminho. Ali, também houve “golpes institucionais”. E também saíram favorecidos os setores mais corruptos e mais de direita. Nos dois casos, assim como no Brasil agora, a vontade popular expressada pelo voto não está sendo levada em conta. Por que se elege uma pessoa se depois, com esse tipo de manobras judiciais ou parlamentares, se burla essa eleição?
Folha – Que erros Dilma tem cometido, em sua opinião?
Bregman – Dilma chega tão fraca a essa situação porque vinha aplicando políticas de ajuste desde o dia seguinte de sua eleição. Já que se chegou a esse ponto, ela deveria, agora, chamar verdadeiras mobilizações, e não preferir atuar em resposta ao que faz a direita. Dilma se debilitou por aplicar políticas de ajuste, e assim perdeu o apoio dos trabalhadores.
Folha – Algo parecido poderia estar ocorrendo aqui, na Argentina, caso Daniel Scioli vencesse?
Bregman – Sim, temos discutido isso internamente no partido. Scioli dizia que não iria fazer ajustes, mas vemos pelo exemplo de Dilma e do Brasil que ele seria obrigado a isso. É provável que estivéssemos presenciando, agora, uma situação parecida. Mas aqui não foi necessário o “golpe institucional”, porque, ao final, ganhou diretamente a direita. Estão os CEOs no governo. A cúpula do governo Macri está cheia de CEOs ou seus representantes, de empresas nacionais ou multinacionais.
Há que se chamar a atenção, porém, para as contradições que vão surgindo. Macri denunciou muito os casos de corrupção do kirchnerismo, mas agora estão começando a saltar os seus próprios escândalos, o dos Panamá Papers, o de Néstor Grindetti [ministro da economia de sua gestão como prefeito de Buenos Aires], sua relação com [o empresário] Nicolás Caputo, as escutas ilegais e outros.
Folha – Você não acha que a Lava Jato, pelo menos, pode servir de bom exemplo para outros países latino-americanos, ao investigar a corrupção por meio de recursos como a delação premiada, por exemplo?
Bregman – Não, não acreditamos nesse tipo de investigação. Não vemos o exemplo do Brasil iluminando ninguém, mas sim o contrário. Vemos um setor reacionário, conservador, que se aproveita de uma situação em que um governo eleito está debilitado para levar o país a políticas que vão ser muito mais duras contra os trabalhadores. Estão utilizando as investigações de corrupção para fortalecer políticas de muito mais ajuste. Se alguém tem dúvidas, que olhe para a Argentina. Temos agora um governo no poder que fez da corrupção uma bandeira de campanha e que, após assumir, continua mantendo as medidas corruptas e fazendo ajustes brutais contra os trabalhadores. Portanto, de nenhuma maneira acreditamos que o Brasil vá ser exemplo para o resto da América Latina, um caminho a ser seguido. Não acreditamos que da Lava-Jato possa sair verdadeira justiça.
Folha – Como nossos países podem combater a corrupção, então, na sua opinião?
Bregman – Nós acreditamos que a própria gestão do estado capitalista é a que leva a esses níveis de corrupção. Aconteceu com o kirchnerismo, quando integrou à sua base de apoio muitos movimentos sociais e entregou a eles a gestão da construção de moradias, por exemplo. Vários líderes desses movimentos terminaram investigados por corrupção, de Milagro Sala até Hebe de Bonafini (líder das Mães da Praça de Maio). Tem a ver com isso, as organizações sociais, ao integrar-se ao estado capitalista, passam a replicam seus métodos.
Na Argentina, a obra pública foi responsável pelo crescimento de grupos milionários. Em discurso que fiz no Congresso, perguntei que diferença há entre Lázaro Báez [empresário beneficiado por contratos do governo kirchnerista], que fez sua fortuna saqueando o Estado por meio das obras públicas em Santa Cruz e em toda a Argentina, e o grupo Macri [que pertence à família do atual presidente], que passou de ter sete empresas antes da ditadura militar (1976-1983) a 47 empresas? E todas elas ao redor de construção de obras públicas? Não vejo diferença. Enquanto a Argentina afundava economicamente, como de fato afundou na ditadura, o grupo Macri cresceu de 7 para 47 empresas. É inexplicável, salvo que tenham se apropriado da obra pública por meio de benefícios em concessões. Vemos, portanto, que isso é a gestão do Estado capitalista. E ao PT ocorreu o mesmo, ao chegar ao poder, terminou replicando esses mesmos métodos.
Muita gente votou em Macri, não por ser de direita ou por ser macrista, apenas por estar cansada do kirchnerismo, da corrupção kirchnerista, e de todas essas coisas que vinham se tornando públicas. E hoje se vê que estamos pior, há mais pobres, mais inflação.
Consideramos que a saída passa pela mobilização por meio dos sindicatos e das associações de trabalhadores.
Folha – Mas você acredita que hoje a sociedade argentina esteja menos resignada à corrupção do que antes? Algo como os protestos que ocorreram no Brasil começam a ocorrer aqui? Quando Macri elegeu por decreto os dois juízes da Corte Suprema, por exemplo, houve uma resistência muito grande, e ele teve de voltar atrás e usar as vias institucionais. Não acredita que a sociedade esteja mudando, ficando mais consciente?
Bregman – Creio que, se há uma maior rejeição à corrupção, tem a ver com o fato de que, já há alguns anos, a crise econômica mundial tem impactado muito a América Latina. Isso fez com que a corrupção passasse a ser algo mais escandaloso, mais insuportável, porque se contrapõe com a redução do nível de vida das massas populares. Quando você vê que seu dinheiro não chega ao fim do mês e, ao mesmo tempo, fica sabendo dos escândalos, dos desvios de dinheiro por conta da corrupção, as duas coisas juntas causam revolta. No caso dos governos “pós-neoliberais” isso se agrava porque as expectativas eram altas, os discursos eram mais audazes do que aquilo que de fato conseguiram fazer, e agora estão em risco por causa da junção dessa insatisfação com a crise econômica.
Folha – Aqui na Argentina acompanhou-se a votação do “impeachment” na Câmara de Deputados brasileira com bastante atenção. Surpreendeu o nível do nosso Congresso?
Bregman – Sim, foi um choque, nos assombrou muito, principalmente por conta da evocação repetida da família e da religião.
Folha – Acha que o Estado laico está ameaçado na América Latina?
Bregman – É difícil generalizar, mas o que vimos no dia da votação, no Brasil, preocupa. E aqui na Argentina não temos uma bancada evangélica como a do Congresso brasileiro, mas a Igreja Católica possui muita força. E com isso há muitos projetos importantes parados, como a lei do aborto, entre outros, que poderia evitar a morte de tantas mulheres argentinas e que segue travada. É preocupante que grupos religiosos se imiscuam na política em estados laicos como os do Brasil e da Argentina.
Por outro lado, certos partidos também são responsáveis por isso, ao fazer alianças com essas bancadas para poderem eleger-se. As políticas de aliança feitas pelo PT com alguns desses grupos político-religiosos se mostrou catastrófica para o partido, como vimos na votação.