Carlos Gamerro e sua viagem pela literatura argentina

Sylvia Colombo
O escritor argentino Carlos Gamerro (Foto Clarín)
O escritor argentino Carlos Gamerro, autor de “Facundo o Martín Fierro” (Foto Clarín)

O que teria acontecido com a Argentina se, em vez de ter escolhido o “Martín Fierro” (1872), tivesse preferido o “Facundo” (1845) como obra definidora de seu caráter nacional? A pergunta, um tanto cifrada para não iniciados na literatura local, contém o grande debate que perdura por trás da discussão sobre a identidade argentina desde o século 19.

O que a torna tão essencial é o fato de ter sido verbalizada, no século seguinte, por Jorge Luis Borges (1899-1986), o mais importante escritor argentino e um dos principais da literatura mundial.

Responde-la rendeu teses, discussões acaloradas nos campos acadêmico, literário e político. A novidade, agora, é que ela ressurge, resumida, num livro bastante original.

Espécie de cânone das letras do país-vizinho, “Facundo o Martín Fierro – Los Libros que Inventaron la Argentina”, de Carlos Gamerro, 54, acaba de ser premiado pela Feria del Libro de Buenos Aires, que ocorre até o próximo dia 9 de maio.

“Minha ideia era questionar o alcance dos livros na criação de uma realidade nacional, e em que medida podem nos explicar o tipo de sociedade em que nos tornamos”, explicou Gamerro, em entrevista que concedeu à Folha, em seu escritório, em Buenos Aires, no final do ano passado.

A questão borgeana, de forma bastante simplificada, apresenta basicamente duas ideias, pois projetos de país. Duas ideias geradas num século, o 19, em que imaginar o que seria a Argentina daí a 100 ou 200 anos havia produzido uma atmosfera fervilhante de ideias.

A que surge das páginas do épico “Martín Fierro” (José Hernández) é a do elogio às habilidades e à personalidade do “gaucho”, homem que se rebela contra a lei e se baseia num código de honra supostamente justo e particular, consequentemente anti-imperialista e anti-“establishment”.

Martín Fierro, o protagonista, é um desertor.

Já o “Facundo” é um ensaio histórico-panfletário cujo objetivo é apontar como na Argentina convergiam, naquele momento, duas forças, a da “civilização”, vinda de modelos exteriores, e a da “barbárie”, nascida de nossas condições pré-coloniais e coloniais.

O livro de Gamerro não elege um ou outro, mas oferece uma abordagem original, que explica porque a história política argentina e seus personagens, de certa forma, vivem confundindo-se com aspectos dos estereótipos apontados nos dois clássicos.

A pergunta, entretanto, não é mais do que um ponto de partida para uma reflexão maior, que acompanha a literatura argentina ao longo de seus mais de 200 anos de história.

“É muito comum que tentemos buscar interpretações da realidade na sociologia, na história, no jornalismo, mas não tanto na literatura, e gostaria de demonstrar que esta tem muito a dizer”, afirma Gamerro.

Para quem conhece pouco de literatura argentina para além dos clássicos Borges e Julio Cortázar (1914-1984), o livro funciona como um didático guia de leitura para a obra de outras penas essenciais: Esteban Echeverría, Lucio V. Mansilla, Manuel Puig e Rodolfo Fogwill, entre outros.

É curioso ver como Gamerro inclui, nesse selecionado elenco, também autores tidos, em seu tempo, como representantes de um segundo escalão do mundo letrado, como Roberto Arlt (1900-1942), ou ainda de uma literatura argentina realizada desde o exterior ou com o olhar de fora, como é o caso de Juan José Saer (1937-2005), recentemente reeditado e agora finalmente elevado pela crítica ao posto de um dos grandes, depois de passar boa parte de sua vida em Paris. Esse escritor santafesino, ou seja, de fora do eixo portenho, talvez tenha escrito o melhor livro sobre a ditadura argentina, sem nunca trata-la de forma direta, “Nadie Nada Nunca” (1980), a quem Gamerro dedica especial atenção.

Faz parte da atual recuperação de Saer, por exemplo, o fato de que a crítica literária Beatriz Sarlo esteja preparando um ensaio biográfico sobre o escritor com lançamento próximo.

Já com relação a Arlt há um reconhecimento recente desse filho de uma classe média imigrante e remediada, de alguém que entrou nas letras pelo jornalismo e pela crônica “amarilla” e não pela elite intelectual da época, e com um olhar agudo para os costumes, os crimes e o submundo de uma Buenos Aires nada parecida a seu estereótipo mais conhecido _o de capital europeia na América Latina.

Gamerro defende a ideia de que muito da Argentina peronista que se manifestaria anos depois já se podia vislumbrar nas descrições da sociedade apresentadas nos textos de Arlt.

Creio que são reduzidas as chances de um editor brasileiro se animar a traduzir um livro como “Facundo o Martín Fierro” no Brasil (vou adorar estar errada), pelo pouco interesse de fato que há de traduzir os próprios autores que são tema do livro para o português (poucos estão). O que dirá de um catatau de quase 500 páginas comentando sua obra. A viagem que Gamerro propõe por meio desses livros, porém, é uma proposta envolvente e de narrativa fluida, convidando a que, ao longo da leitura, se abram cada um dos livros citados.

Uma pena que só se reforçou para mim quando, ao final de nossa entrevista, Gamerro apontou para sua estante, cheia de traduções de seus livros mais importantes (“Las Islas”, “La Aventura de los Bustos de Eva” e outros) para o inglês, o francês, e outras várias línguas. Nenhuma para o português. Que lástima a estreiteza de horizonte de nosso mercado editorial.

A mais recente obra de Gamerro também foi lançada na feira de Buenos Aires e se chama “Cardenio”. Está baseada num texto perdido de Shakespeare supostamente inspirado numa passagem do “Dom Quixote”, de Cervantes. Uma homenagem nos 400 anos da morte dos dois grandes autores, celebrados nas últimas semanas.