Sylvia Colombo acompanha e comenta os acontecimentos políticos e culturais da América Latina. Baseada em Buenos Aires, também traz histórias sobre a cidade e dos outros países da região para os quais viaja
Escritor, professor, viajante, admirador de seriados televisivos e de livrarias, Jordi Carrión, 40, é um dos nomes da nova literatura espanhola com projeção internacional. Autor de “Los Huérfanos”, “Los Muertos” e ensaios sobre a televisão, Ricardo Piglia e as livrarias físicas que ainda existem no mundo, Carrión é catalão. Para o especial sobre Cervantes publicado hoje pela “Folha”, contou como Miguel de Cervantes (1547-1616) é interpretado desde Barcelona. Segue aqui a entrevista, realizada na Espanha, em março.
Folha – Qual é a influência de Cervantes sobre a nova geração de autores espanhóis?
Jordi Carrión – A influência é total. Não só na nova geração, mas também em todas as novas gerações de escritores do mundo, ao menos desde o final do século 18. Ainda assim, reforço que existem dois tipos de escritores. Os que se mantêm fiéis ao espírito experimental e ambicioso de Cervantes, e os que se conformam com uma das versões possíveis da novela cervantina, a dos romancistas realistas do século 19. Tento situar-me entre os primeiros. Herdeiros de Cervantes, na Espanha, nesse sentido, estão autores como Juan Goytisolo, Enrique Vila-Matas, Clara Usón, Juan Francisco Ferré, Isaac Rosa, Mercedes Cebrián ou Robert Juan-Cantavella, entre muitos outros.
Folha – A história documental de Cervantes não nos permite fazer muitas afirmações sobre vários aspectos de sua vida: sua aparência, por onde andou, suas motivações e até seu rosto são, em grande medida, um mistério. Em que sentido acredita que esse mistério impacta na leitura que se faz dele?
Carrión – Ainda que nos interesse sua vida, o que importa é sua obra, sua obra maestra, principalmente, o “Dom Quixote”. E é um romance cheio de perguntas, de enigmas, de potência de leitura. Um romance inesgotável.
Folha – Como se lê Cervantes desde Barcelona? Antes e hoje? É leitura obrigatória no currículo escolar? É conflituoso tê-lo como cânone literário em meio às reivindicações pela independência da Catalunha?
Carrión – Sim, é leitura obrigatória em toda a Espanha. Aqui ele é querido especialmente, porque seguramente visitou essa cidade, porque a Barcelona da segunda parte do “Quixote” é uma das grandes visões literárias da cidade, e porque levantou a “Tirant lo Blanc” (1490) como grande romance de cavalaria. Agora que Barcelona é cidade literária da UNESCO, se está dando mais valor também a isso, a esse legado. E também ao de García Márquez ou de Vargas Llosa, otros barceloneses temporais ilustres.
Folha – Cada época leu o autor de “Dom Quixote” de uma maneira. Nos primeiros tempos, Cervantes foi muito idealizado. Depois, foram surgindo matizes sobre seu comportamento. Como definiria a leitura contemporânea que se faz de sua obra?
Carrión – Para mim o que mais interessa é a forma como o “Dom Quixote” é uma máquina de criar novidades novelescas, e uma máquina de criticar não apenas a Espanha, senão todos os péssimos valores da Espanha da época: a perseguição religiosa, a hipocrisia social, a nobreza sem mérito, o império assassino.