Quem se importa com as 250 mil peruanas esterilizadas à força?
Quando viajei pelo interior do Peru para coletar relatos de mulheres esterilizadas sem consentimento durante os anos do fujimorismo (1990-2000), não havia muito o que comemorar. O processo para investigar e levar responsáveis a julgamento ia a vinha, andava e era interrompido, as mulheres envelheciam, perdiam o apoio familiar e as esperanças, mas muitas ainda lutavam por reparação (minha reportagem daquela época está aqui). A maioria das vítimas vivia em regiões afastadas e empobrecidas do país, nas comunidades indígenas dos Andes. Nos últimos tempos, porém, vinham recebendo cada vez mais ajuda de grupos e associações de defesa de seus direitos, formados em Lima e em outras grandes cidades do país. Uma representante no Congresso peruano, a indígena Hilaria Supa, se transformou em sua principal porta-voz.
Agora, que dois entre os três principais candidatos às eleições presidenciais, no próximo domingo (10), são mulheres, o caso das esterilizações forçadas ganha nova importância no debate político. Do ponto de vista judicial, também, uma vez que a pressão dos grupos conseguiu fazer com que o julgamento fosse reaberto, no ano passado. O presidente atual, Ollanta Humala, que deixa o cargo, depois de muito ser cobrado, tomou uma atitude e criou uma espécie de “comissão da verdade”, cujo objetivo é obter uma lista definitiva das mulheres afetadas.
Mas de que se trata esse drama? Durante os anos 1990, com a justificativa de combater a pobreza, que então era um problema gravíssimo no Peru, ultrapassando os 50% da população, o ditador Alberto Fujimori lançou um projeto de “planejamento familiar”, que saiu divulgando mundo afora. No papel, era uma maravilha, tratava-se de esclarecer homens e mulheres das regiões andinas sobre a importância de adequar o desejo de terem filhos ao orçamento do casal. E de oferecer, de forma gratuita, os recursos para ligar trompas e realizar vasectomias para aqueles que optassem, de livre e espontânea vontade, pela alternativa de limitar o número de filhos.
Na vida real, porém, o plano foi aplicado com muito mais brutalidade. De acordo com o relatório “Nada Personal”, elaborado em 1998 pela advogada Giulia Tamayo, com base em denúncias, vídeos dos procedimentos e documentos do Ministério da Saúde, mais de 250 mil mulheres haviam sido esterilizadas sem saber. Em geral, o procedimento era realizado nas clínicas onde realizavam suas checagens rotineiras, ou mesmo quando ali iam para queixar-se de um resfriado ou levar algum filho com dor de barriga. Também há registros de casos em que agentes de saúde foram busca-las em suas próprias casas para que fossem levadas às clínicas para fazer o procedimento à força.
O relatório foi usado na abertura de um processo em que apareciam como acusados vários médicos, o ministro da Saúde e o próprio Fujimori. Após seu surgimento, vários médicos que haviam realizado o procedimento, também se somaram a denunciar as ordens superiores de esterilizar mulheres sem informa-las. Hoje, Fujimori cumpre pena de 25 anos, por corrupção e crimes de direitos humanos, mas ainda não respondeu judicialmente pelas esterilizações. Sua alegação é que todas foram realizadas com consentimento, e que as denúncias das mulheres são mentirosas.
Quando falei com algumas dessas vítimas, na região de Piura e Arequipa, elas contaram que, pior que o drama de não poderem mais ter filhos, as esterilizações significaram uma mudança do status delas nas comunidades. Abandonadas pelos maridos, que diziam que agora elas “certamente iam virar prostitutas” ou que “não serviam mais como mães”, eram também hostilizadas pelas outras mulheres, as férteis do grupo. “Numa sociedade tão machista como a peruana, a estigmatização tem um papel muito importante. As sequelas que essas esterilizações deixaram causaram a desestruturação de várias famílias”, disse à Folha Rosemarie Lerner, uma das responsáveis do projeto Quipu (http://blog.proyectoquipu.com/), que entre outras coisas realizou um documentário (abaixo, o trailer).
Em sua primeira tentativa de se eleger, em 2011, Keiko Fujimori seguiu a estratégia do pai e negou-se a admitir que as esterilizações haviam sido forçadas. Agora, em que precisa de mais apoio do que os cerca de 30% de eleitores que tendem a votar pelo fujimorismo, Keiko tem adotado um discurso mais flexível, admitindo que os abusos podem ter acontecido e, caso a Justiça assim decida, os responsáveis devem ser punidos. O tema, porém, não deixa de ser espinhoso para ela, que precisa do apoio do pai e de seu círculo, mas não pode compactuar com os crimes cometidos por ele naquela década.
Já os partidos de oposição têm no caso das esterilizações uma das bandeiras para atacar o fujimorismo e debilitar Keiko. A ascensão de uma candidata mais à esquerda, Veronika Mendoza, que vem oscilando entre o segundo e o terceiro lugar nas intenções de voto, torna o debate sobre a questão ainda mais latente, e ela ganha apoio das associações de apoio às vítimas. O próprio Nobel e ex-candidato a presidente, Mario Vargas Llosa, que apoia o segundo colocado, o conservador Pedro Pablo Kuczynski, também pede uma solução para esse caso e rápido desenrolar dos julgamentos.
Pela visibilidade e pelos apoios que o assunto ganhou nos últimos tempos, quem quiser vencer essa próxima eleição, pela direita ou pela esquerda, não poderá se esquivar dele.