Filme sobre estupro expõe fissuras políticas na fronteira Brasil-Argentina-Paraguai
O cineasta argentino Santiago Mitre trata em seus filmes de um tema muito comum na obra de seus conterrâneos: a política. Porém, em vez de abordar o assunto de forma direta, localizando regimes e governos no tempo, apontando a grupos ou personagens ou buscando desenhar a “grieta” da polarização do país, Mitre aborda a política de um modo mais profundo. Seu olhar não é partidário nem tenta justificar algum dos lados no quadro geral, mas sim retrata a política de modo mais cultural, psicológico, como se fosse uma espécie de cenário onde todos atuamos. Foi assim em “El Estudiante” (2011), seu filme de estreia que o projetou internacionalmente. Ali, um jovem vindo do interior chegava à universidade, em Buenos Aires, para descobrir como amizades, amores e laços de lealdade eram construídos e destruídos por conta da existência de disputas, não das disputas em si.
Assistente de Pablo Trapero, Mitre alçou voo em festivais desde então, e recentemente lançou “La Patota”, filme que foi exibido no Brasil em festivais, mas até agora injustamente ignorado pelo circuito comercial. Uma pena, mas que pode ser parcialmente resolvida pelos que estão no Rio de Janeiro nesta semana. A produção integra “Histórias Extraordinárias – Cinema Argentino Contemporâneo”, entre 5 e 17 de abril, na Caixa Cultural. A curadoria é da brasileira Natalia Barrenha e do argentino Marcelo Panozzo, que entre 2013 e 2015 foi diretor do Bafici (Buenos Aires Festival Internacional de Cine Independiente).
Conversei com Santiago Mitre sobre “La Patota”, que é baseado num filme de 1960, com a hoje veterana Mirtha Legrand no papel da protagonista. No filme original, dirigido por Daniel Tinayre, uma jovem professora da elite portenha, contra a vontade de seu pai, resolve dar aulas no subúrbio de Buenos Aires. É atacada e estuprada pelos próprios alunos e resolve enfrentar a família, o noivo, e a Igreja, desculpando os criminosos, e mantendo a gravidez que resulta do ato.
“O comportamento aparentemente incompreensível de Paulina (a protagonista, interpretada por Dolores Fonzi) é o que mais me atraiu, e uma das chaves da razão pela qual o filme é bem recebido lá fora, sua maneira estranha, enigmática, de entender e processar o estupro é o que move o roteiro”, diz Mitre.
Sua versão de “La Patota”, co-produzida pela Videofilmes brasileira, porém, ocorre nos dias de hoje. Paulina, também à revelia do pai, resolve ir dar aulas numa comunidade carente da província de Misiones, ao norte, uma parte empobrecida do país, que faz fronteira com o Paraguai e o Brasil. “Me interessou muito a multiculturalidade do local, e colabora para a confusão de Paulina de entender onde está, e de ter certeza sobre quais ideias quer ensinar. Ela quer aprender e não entende o mundo em que está”, diz. Em suas primeiras tentativas de apresentar conceitos básicos da vida em sociedade, os alunos riem, desobedecem, falam entre eles em guarani, a olham com uma mistura de desejo e violência que estão por explodir, como de fato acontece quando um grupo deles a intercepta numa estrada de terra e a estupra.
Daí para a frente, o filme se descola de seu original, e se passa de drama social a um questionamento psicológico que a personagem propõe sobre o que é a Justiça. Mais do que isso, sua necessidade de entender a lógica e as paixões daquele meio social transformam-se em algo tão importante para ela, que ela não duvida em dizer não ao pai e ao noivo e em abdicar de fazer um aborto em Buenos Aires. Contra toda a suposta “lógica” de uma mulher branca, de elite portenha e com recursos, ela não tenta fugir do problema que lhe aparece, mas sim, mergulha nele.
Já tornou-se lugar-comum elogiar filmes argentinos recentes, tamanho o volume de boas produções que o país-vizinho vem apresentando. Uma pena “La Patota” não ter ganhado, ainda, grande projeção aqui no Brasil. Quem estiver no Rio, portanto, não perca essa única oportunidade.