Quantos foram os desaparecidos na última ditadura argentina?

O número de mortos e desaparecidos durante uma ditadura militar deveria ser um dado objetivo, grave, sujeito a Justiça e a condenações, além de obter um espaço irrefutável na memória dos cidadãos de qualquer país. Na Argentina, esse dado com frequência é manipulado por um lado ou por outro da sociedade. De um deles, os que achavam, na época, que os militares estavam realmente “protegendo” o país de uma espécie de “golpe comunista” e, portanto, se encontravam autorizados a torturar e a matar civis. Esse pensamento permanece nos dias de hoje, ainda que dissimulado e por vezes envergonhado diante da imensa repercussão negativa que obteve o resultado final da barbárie promovida com base nessa justificativa. De outro da batalha dos números estão as vítimas legítimas, seus familiares e amigos, muitos deles já tendo recebido reparação financeira, outros ainda por receber. A estes, somam-se, infelizmente, oportunistas que veem na bandeira dos direitos humanos um rico filão de votos.
Só faz mal a uma sociedade traumatizada pela violência como a Argentina andar disputando esses números por décadas e décadas. Em 2016, relembram-se os quarenta anos do golpe. A redemocratização veio em 1983. Ou seja, é mais do que tempo de promover uma espécie de reconciliação. Quanto aos números, porém, creio que se estabeleceu um “falso binarismo”, espalhado pela imprensa, pelos meios, pelas redes sociais desinformadas, e pelo senso comum “callejero” mais inflado pela ideologia do que pelo conhecimento.
Desafortunadamente, historiadores sérios, e gente que estuda documentos de fato recém-revelados na Argentina e nos EUA são pouco ouvidos, e os números que surgem desses estudos, embasados em documentação fiável, muitas vezes não são levados em conta. Não existe binarismo. O número total de mortos e desaparecidos talvez seja realmente impossível de cravar com exatidão, mas novos estudos e registros vêm levando o índice para muito mais perto dos 30 mil _que muitos acham fictício_ do que dos 7 mil _cifra que preferem cravar aqueles que creem que a ditadura argentina foi de algum modo “branda”.
A primeira contagem confiável de desaparecidos surgiu com os trabalhos da Conadep (Comissão Nacional de Desaparecidos), instituída pela democracia sob o governo de Raúl Alfonsín (1983-1989), cuja principal porta-voz é a ativista Graciela Fernández Meijide, ela mesma mãe de um rapaz, Pablo, então 17, tirado de casa na presença dos familiares e nunca mais devolvido. A Conadep contabilizou, nos anos 1980, com a ajuda de outras instituições de direitos humanos, 7.954 casos de pessoas desaparecidas, com nome, circunstância e características.

Essa lista, com o tempo, foi sendo aumentada com a revelação de casos que vinham sendo denunciados de várias partes do país a organizações de direitos humanos. A maioria das desaparições ocorreram nos primeiros anos da ditadura (1976-1983), os chamados “anos de chumbo”. Organizações de direitos humanos creem que, além dos casos denunciados, que a essa altura já ultrapassavam os 10 mil, muitos sequer haviam sido relatados, por medo dos familiares ou porque, em muitos casos, eliminava-se toda a família e não sobrava quem pudesse fazer a denúncia.
Os defensores de uma suposta “ditabranda” argentina reforçam que o número amplamente veiculado nos anos 70 e 80, o dos 30 mil, é uma ficção total, algo criado pelos exilados argentinos no exterior para “dar mais dramaticidade”, como se isso fosse necessário, à sua causa. O último a proferir essa infâmia com ares de certeza foi o ministro de cultura da cidade de Buenos Aires (do PRO, partido de Mauricio Macri), Darío Lopérfido, que, na semana passada, disse que os desaparecidos “não foram 30 mil” e que esse número “se acertou numa mesa, para conseguir subsídios”.
Lopérfido toma como base leituras muito mal-feitas de investigações sérias, como a do jornalista Ceferino Reato, que, em “Operação Primícia”, conta um episódio de montoneros que atacaram um quartel em Formosa e foram listados como vítimas. A investigação de Reato indica que casos assim ocorreram, mas usar essa passagem para reavivar a infame “teoria dos dois demonios”, que, de forma equivocada, coloca guerrilheiros adolescentes mal-armados em pé de periculosidade e de poder de ameaça a Forças Armadas treinadas e voltadas para a finalidade de executar quem considerasse “subversivo” é no mínimo má-fé ideológica e desrespeito às vítimas.
Mas o que esse “falso binarismo” que tornou a discussão desinformada nos dias de hoje ignora é que há documentos revelados recentemente em Washington que mostram a troca de informações entre militares argentinos e chilenos, como revelou reportagem de Hugo Alconada Mon, no jornal “La Nación”. Ou seja, documentos privados da ordem da Operação Condor entre aliados militares, e não relatórios destinados ao público. Esses papéis indicam que os argentinos informavam, então, seus pares chilenos que haviam matado na Argentina por volta de 22 mil pessoas ligadas à subversão. Sim, os próprios militares argentinos falando em terem eliminado 22 mil pessoas. Os documentos tratam do período entre os anos de 1975 e 1978, ou seja, com alguns anos de ditadura ainda por fazer mais estrago mais adiante.
Portanto, não há binarismo. Não se pode dizer “foram 7 mil” ou “foram 30 mil” como quem diz “É Boca” ou “É River”. Estamos diante de um drama imensamente mais doloroso, com consequências reais até os dias de hoje, com vozes caladas, vidas encerradas, corpos ainda perdidos nas profundezas do Rio da Prata e familiares, amigos, afetos desses que morreram ainda sentindo os efeitos de suas desaparições até hoje.
Seria alvissareiro que o novo governo nacional argentino, que entre suas promessas de campanha estava a de despolitizar os direitos humanos e promover uma conciliação mais ampla, reunisse de fato toda essa nova informação e procurasse confeccionar uma nova lista, que estivesse desconectada de possíveis apoios políticos. Se o kirchnerismo foi exemplar no julgamento massivo de repressores, cometeu um grande erro ao alinhar organizações à sua base de apoio de governo. Se Macri prometia acabar com isso e superar os traumas da ditadura, poderia começar chamando representantes de todos os setores envolvidos, técnicos aqui e fora, a Justiça, as equipes forenses que ainda estão trabalhando e elaborar a lista mais acurada possível sobre quanta gente perdeu a vida por conta da ação do Estado.
Por outro lado, vem se dando outro movimento. Há anos organizados, familiares de vítimas da guerrilha pedem reconhecimento. Aqui há dois tipos de vítimas. Um deles é o de civis que por fatalidade estavam no meio de tiroteios ou que foram mortos por bombas colocadas por montoneros. Outro, o de militares que foram deliberadamente sequestrados e alguns mortos por guerrilheiros. É um assunto delicadíssimo do qual tratei numa ampla reportagem para a Ilustríssima em 2011 http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2011/10/983882-o-que-e-isso-montonero.shtml.
Pois bem, o que pedem essas organizações? Se esse reconhecimento é uma listagem daqueles que foram vítimas de ações ilícitas de guerrilheiros, me parece mais do que justo. Muitos, porém, querem ainda julgamentos e indenizações. E nesse ponto eles não têm razão. Afinal, segundo o Estatuto de Roma, os crimes cometidos pelo Estado, que mantém o uso da Força, são muito mais graves do que os crimes cometidos por civis. Crimes de Estado são crimes de lesa-humanidade, portanto jamais prescrevem. Podem e devem seguir sendo investigados e julgados. Já os crimes cometidos por guerrilheiros respondem à legislação criminal civil, e portanto prescrevem após cerca de 15 anos (para o caso de assassinatos). Nesse caso, não me parece que caberia iniciar julgamentos e muito menos condenações. Mas não me parece errado investigar, esclarecer e divulgar quem fez o quê.

Há, porém, nesse último item, exceções. Ou seja, crimes cometidos pela guerrilha, por civis, que se enquadram em crimes de lesa-humanidade, dependendo da opinião e análise de juristas. E aí, sim, a reabertura de casos estaria em perspectiva. O mais grave, na Argentina daqueles tempos, foram os cometidos sob o comando de Mario Firmenich, líder montonero hoje exilado na Espanha, e que foi responsável pela execução do general Pedro Eugenio Aramburu e do sindicalista Jose Ignacio Rucci, mão-direita de Perón. Ambos são crimes políticos em essência.
Como se vê, o caso dos direitos humanos é uma saga em aberto na Argentina. Seria muito importante que o novo governo não agisse como se fosse necessário apenas “olhar para a frente” como tantas vezes disse Mauricio Macri. Se seu discurso também é o do fim da “grieta” e o da reconciliação dos argentinos, todas essas discussões deveriam voltar à tona. Agora, cabe aos argentinos, também, estar mais movidos pela curiosidade em esclarecer, pela busca pela informação, do que pela paixão ideológica.