Indicado ao Oscar mostra como justiça pelas próprias mãos gera mais violência

Sylvia Colombo

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Disponível no Netflix, o documentário “Cartel Land” é um corajoso retrato dos grupos chamados de “autodefensas”, no México, ou “vigilantes” nos EUA. Apesar de o fenômeno ter proporções diferentes _em tamanho, armamento, ideologia_ dos dois lados, as semelhanças falam mais forte. E digo que o filme é corajoso porque sua câmara se mete nos chamados “operativos” mais perigosos _caçadas a membros dos cartéis, ameaças, enfrentamentos armados. O que une “autodefensas” e “vigilantes”, basicamente, é o cansaço de ditos cidadãos comuns, habitantes de áreas próximas das fronteiras ou distantes de grandes centros de poder que, desprotegidos das forças do Estado, estão subjugados ao poder dos cartéis das drogas. Esse controle se dá de várias formas. As zonas controladas pelo tráfico basicamente devem prover segurança, alimentação, logística e, claro, diversão aos criminosos. Assim, populações locais passam anos sendo extorquidas, pagando aluguel por suas próprias casas, oferecendo altas porcentagens de suas vendas e colheitas, tendo suas mulheres e filhas estupradas e colocadas a seu serviço, de limpeza, cozinha etc. São também, moeda de troca e garantia de demarcação de território. Em geral, são de civis os corpos degolados ou as cabeças dependuradas em estradas ou entradas de vilarejos para mostrar que, naquele espaço, quem passou a mandar foi o cartel tal.

O filme traça de maneira muito didática como isso se dá de ambos os lados. E é impossível não entender, pelo menos num primeiro momento, o que move esses cidadãos em armas, que não têm governo, nem polícia, nem Exército a quem pedir proteção. O impulso é armar-se como se pode, defender suas propriedades e famílias, e fazer pagar olho por olho, dente por dente, como repete literalmente um dos autodefensas a um criminoso do bando dos Cavaleiros Templários por eles caçado. A questão é que, o que parece uma reação legítima, logo mostra que a emenda é pior que o soneto, que sangue não se pode pagar com mais sangue e que a justiça pelas próprias mãos pode até parecer ser uma saída digna a cidadãos de pouca instrução e pouca prática democrática, mas logo de desmantela ao render-se aos desmandos, paixões e poderes dos que são mais influentes, dos que se deixam seduzir pelo dinheiro e pelo poder, dos que inevitavelmente acabam passando eles mesmos para o lado do tráfico. Enfim, o resultado é que ninguém está isento a ter seu grupo infiltrado e corrompido. E aí, a conta, que já era cara, tem de ser pagada em dobro. Na ausência do Estado de Direito, apenas o caos terá lugar.

Mas vamos aos personagens, que é o aspecto mais rico do filme. Do lado norte-americano, está um sinistro Tim “Nailer” Foley, líder do Arizona Border Recon. Ele se justifica, diz que fica bravo quando o chamam de “racista” porque seu foco são criminosos mexicanos, e que a palavra “vigilante” não era ruim no passado, mas a imprensa teria deturpado seu significado. Diz que nasceu de forma legítima. “Eu supostamente deveria poder chamar o 911 e ser atendido, mas isso vai durar pelo menos uma hora e meia” (distância de onde está até Tucson). Até lá, diz, ele e sua família serão dizimados, e é por isso que pega em armas. Seus colegas são ainda mais categóricos ao justificarem-se. “É claro que tem de haver uma fronteira e ela tem de ser respeitada. Você não pode colocar duas raças de cachorros num mesmo espaço e querer que não briguem. É a mesma coisa, não se pode colocar duas raças de gente (referindo-se a mexicanos e americanos) juntos e esperar que não se matem”. O grupo não tem dúvidas. “Existe bem e mal e nós estamos do lado do bem”. 

Do lado do mexicano, está outro personagem bastante polêmico, o dr. Mireles, em seu tempo, líder máximo das “autodefensas” de Michoacán. Médico de profissão, Mireles é um sujeito alto, carismático, mulherengo, que reuniu rapidamente um pequeno exército de ex-deportados dos EUA, muitos com passagem pelo Exército, e logo armou o grupo até os dentes. Estive em território de “autodefensas” no ano passado, no Estado de Guerrero, e, embora parecidos em sua essência, falava-se sempre dos “autodefensas” de Michoacán de forma diferente. Trata-se de uma zona muito rica, e esses grupos eram financiados por empresários, gente ligada ao rico porto Lázaro Cárdenas, e portanto o grupo do dr. Mireles logo se transformou num poderoso para-Exército. Tanto que o próprio presidente Enrique Peña Nieto foi até a região para propor, visto não poder desmobilizar o grupo do dr. Mireles, que eles fossem incorporados ao Exército como “forças rurais”. O movimento do governo causou o racha no grupo, o que, obviamente, só fez aumentar a violência local.

Como curiosidade, incluo aqui minhas reportagens com os “autodefensas” de Michoacán http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/02/1409827-milicias-fazem-cerco-contra-cartel-no-mexico.shtml feita em 2014, e com os “autodefensas” de Guerrero, em 2015, http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/05/1623881-mexico-paralelo-civis-pegam-em-armas-e-substituem-estado-na-defesa-contra-traficantes.shtml.

A cena de que mais gostei nesse bom e ágil documentário ocorre quando um grupo de “autodefensas” é questionado por um grupo de cidadãos, que perguntam porque não usam identificação, porque andam encapuzados, e a quem representam. É o início de uma reação cidadã a um problema de dificílima solução. Porém, cenas como essa são contrapostas a outras em que o Exército é colocado para correr pela população inteira de uma cidade, que não reconhece sua capacidade de protege-los.

A desolação completa fica por conta dos depoimentos dos que produzem a droga, que falam no princípio e no fim do filme. Rostos cobertos, lamentam que o produto cause tanto estrago e morte, mas dizem que são pobres e que não há outra saída para sair dessa situação. Comentam que o “negócio” vai cada vez melhor, que cada vez se vende mais drogas para os EUA _ou seja, a nova guerra causada pelos “autodefensas” e pelos “vigilantes” sobre a guerra original de nada adianta. E lança o desafio aos que registram as imagens. “Se fôssemos ricos, se tivéssemos condições, seria lindo, teríamos empregos limpos como os de vocês”.

É para fazer com que todos pensem no quinhão de culpa que têm nesse derramamento de sangue ininterrupto causado pela proibição do comércio dessas substâncias.

Não vi os outros documentários indicados. Mas “Cartel Land” é um filmaço.