“Diários de Piglia permitem sentir o sopro da história”, diz Andrés Di Tella
Na Ilustrada desta segunda (18), conto a história do que anda ocorrendo na vida do escritor argentino Ricardo Piglia, 74, que lança memórias e estrela documentário enquanto luta contra uma doença degenerativa, que o vem impedindo de trabalhar como antes. Aqui no blog, publico a íntegra do papo com o diretor de “327 Cuadernos”, Andrés Di Tella, documentarista argentino que também já retratou Macedonio Fernandez, os Montoneros e a Campanha do Deserto em suas obras. O novo filme será exibido no Brasil em breve.
Folha – Quando você começou a fazer “327 Cuadernos”, Piglia já sabia de sua doença? Como foi sua participação no modo como ele foi feito?
Andrés Di Tella – Quando faço um documentário, sempre espero que ocorra algo inesperado. Essa é, justamente, a riqueza desse gênero: ir além do que já sabemos, sair do território conhecido. Nesse sentido, o filme foi sendo improvisado todo o tempo, desde o princípio, sob o signo da confiança e do intercâmbio. Muitas das ideias do filme surgiram do próprio Piglia. Assim como ele também tomou algumas das experiências da rodagem como pretexto para fazer experimentos com o diário.
Havia um roteiro inicial, mas a filmagem e a vida nos levaram muitas vezes por rumos inesperados. Quando começamos, há mais de três anos, Piglia estava com a saúde excelente. Quando apareceu a doença, e se soube do que se tratava, em um primeiro momento deixei de filmar. Mas foi o próprio Ricardo que quis seguir adiante, ainda quando lhe custasse cada vez mais participar, já não como um compromisso comigo, mas como algo que ele mesmo queria terminar.
Desde o princípio, quando voltou a Buenos Aires depois de muitos anos vivendo nos EUA, Ricardo tinha a revisão do diário, muitas vezes postergada, como um objetivo. Ainda que, num primeiro momento, não estivesse seguro de que queria publica-lo. E foi uma decisão de última hora a sair com o título “Los Diarios de Emilio Renzi” e atribuir sua vida a um personagem de ficção, essa espécie de alter ego que desenvolveu ao longo de seus romances.
A filmagem teve distintas etapas. A princípio, para Piglia o filme servia como uma demanda, que o obrigava a ler os cadernos de forma sistemática, algo que lhe provocava certa resistência. Piglia sempre usou esse diário ao acaso, segundo me explicou. Agarrava um dos cadernos que tinha à mão, de qualquer época, e o que lia aí lhe trazia uma lembrança, uma experiência, uma emoção, que eram introduzidas naquilo que estivesse escrevendo naquele momento.
Todos os romances têm elementos do diário, às vezes explícitos, às vezes secretos. Neste caso, se tratava da primeira vez que lia o diário não como uma ferramenta, mas como um material em si mesmo, para publicar. De todos modos, ao final, o que fez foi utilizar a matéria-prima dos diários para fazer uma obra nova, “Los Diarios de Emilio Renzi”, onde entrega sua vida a um personagem de ficção, o que lhe deu liberdade para tratar de sua própria vida como se tratasse, justamente, da vida de um personagem de ficção.
Por outro lado, como cineasta, através desse filme e através do diário de Piglia, me propus fazer uma experiência de enunciação: falar de minha experiência pessoal, de minha intimidade, através da experiência pessoal e o registro íntimo de outra pessoa. Ao falar por meio de outro, provar se é possível expressar o que uma pessoa não era capaz de dizer de sua própria experiência, com nome próprio e na primeira pessoa do singular.
Piglia mesmo me ensinou que um escritor o que faz é isso. Coloca outro no lugar de uma enunciação pessoal. A literatura é sempre autobiográfica e, ao mesmo tempo, é o lugar em que sempre é outro que fala. A literatura seria esse deslocamento, essa tomada de distância com respeito à palavra própria. Há outro que diz aquilo que, de outro modo, não poderia ser dito.
Ao mesmo tempo, me interessava falar de como se constrói a ficção. O diário, em si, em relação à experiência vivida, coloca a questão sobre o que acontece com as recordações, com a experiência, uma vez que se incorporam a uma escritura, a um relato. Não há uma intervenção, aí, necessariamente, da ficção?
Sobre sua produtividade, desde que ficou doente, inclusive desde que já não podia mais escrever por sua conta e era necessário ditar, começou a trabalhar como nunca.
Editou três volumes de seus diários, dos quais acaba de ser publicado o primeiro, “Los Diarios de Emilio Renzi”. São quase mil páginas no total. Agora terminou outro livro de ensaios [“Las Tres Vanguardias”]. E não me surpreenderia que estivesse trabalhando em alguma outra coisa.
Folha – Qual você acha que é a importância desses registros recentes do trabalho de Piglia _a edição dos diários e seu documentário_ para a análise da obra dele como um todo, no futuro?
Não saberia dizer, mas suponho que o documentário ficará como um documento sobre seu processo de trabalho. Ao mesmo tempo, o filme registra certa intimidade de sua vida que nos aproxima do ser humano por trás do escritor. Por outro lado, por meio dos fragmentos de sua vida que surgem no filme como se fossem a ponta de um iceberg, é possível imaginar todo o arco de uma vida. Trata-se, também, de uma cápsula do tempo de meio século de vida argentina.
Folha – Há muitas imagens de época, políticas e históricas, que dizem respeito ao período de vida de Piglia. Ele participou desse processo?
Piglia – Essa foi uma busca muito larga. Ricardo não participou da procura mas, sim, fui mostrando para ele algumas coisas que encontrava. Há dois tipos de materiais de arquivo. Por um lado, os de noticiários, ou, melhor dito, sobras de velhos noticiários, coisas que não foram usadas na época. São momentos da vida política e social que aparecem nos diários de Ricardo: a queda de Perón, que coincide com o início do primeiro diário, passando pela morte de Che Guevara nos anos 60, até a ditadura dos anos 70 e a vida cotidiana dos anos 80. Também há filmes caseiros, familiares, que não são da família de Piglia, mas de famílias anônimas _mas, nesse sentido, todas as famílias se parecem.
Buscamos material que tivesse a ver com as épocas e com os lugares onde a vida de Piglia transcorreu. Há uma apropriação de materiais alheios, que se transformam em pessoais ao serem combinados com as leituras dos diários. Nesse sentido, o próprio Ricardo me disse que achava que o filme tinha uma poética próxima à sua.
O sentido de um documentário aparece sempre ao final de um largo processo. Nunca se trata do que eu buscava, mas do que encontrei. Nesse sentido, fazer um documentário é tratar de entender essa experiência. Para entender a experiência, contamos histórias. O sentido dessas histórias se produz ao identificar uma espécie de arquivo pessoal: que coisas, que feitos, que recordações pessoais, que acontecimentos coletivos são os que fazem com que essa história seja nossa. O uso do material de arquivo nos meus filmes tem a ver com isso. Representa a natureza secreta e compartilhada da nossa experiência.
Me emociona quando, em uma história pessoal, da vida privada de alguém, se abre uma janela e sopra o vento da história.