Será que precisamos de tantas séries e filmes sobre narcos?
Pablo Escobar (1949-1993) foi um assassino monstruoso, responsável por pelo menos 4 mil mortes e por ter afundado a Colômbia no período mais sangrento de sua história. Joaquín “Chapo” Guzmán tem nas costas ao menos 10 mil mortes e é um dos protagonistas da verdadeira guerra civil em que está metido o México _onde desde 2006 já morreram mais de 80 mil pessoas como consequência do embate entre governo e cartéis da droga. Além das estatísticas de assassinatos, ambos colaboraram para destruir a teia social do interior de seus países, corromper a política regional, submeter populações camponesas humildes a uma vida de extorsão e sequestros _e às mulheres dessas populações, a estupros sistemáticos_ e calar jornalistas na base do chumbo na nuca. Deveriam ser tratados como verdadeiros homens maus, correto? Gente que precisa pagar por seus crimes por meio da aplicação da Justiça, e cujo legado à posteridade deveria ser o de um exemplo a jamais ser imitado ou exaltado.
Infelizmente, não é assim. A indústria cultural trata esses heróis com glamour e tapete vermelho. A imprensa internacional, de modo geral, conta suas fugas e prisões de modo cinematográfico, valorizando detalhes e elogiando atos de supostos ousadia, heroísmo ou picardia. Suas histórias estão em filmes, minisséries e livros que celebram seu carisma pessoal, valentia, postura combativa e talento para ganhar dinheiro a partir do sofrimento dos outros. Será que não estamos exagerando na dose? Não quero nem de longe propor proibições de que se produzam coisas como “Narcos”, a série estrelada por Wagner Moura e indicada ao Globo de Ouro, “La Reina del Sur”, também da Netflix, “El Patrón del Mal”, novela colombiana, ou “Escobar”, com Benicio del Toro no papel do protagonista. Tampouco elogiar a ação de alguns governos regionais mexicanos que baniram, por exemplo, os “narcocorridos”, um gênero musical popular que promove a exaltação dos barões da droga. Proibições e vetos definitivamente não são solução. Mas creio que um pouco de senso crítico e uma dose de responsabilidade social não fariam mal aos que produzem e financiam o registro dessas histórias, com evidente apelo de mercado, uma vez que se exaltam o exotismo e o glamour da vida de bandido.
Por que digo isso? Vale prestar atenção nos detalhes da recente nova prisão do “Chapo”, no México. Dono de uma fortuna incomensurável e de várias propriedades, responsável por quase 80% de tudo o que se trafica de droga ilícita para os EUA e podendo comprar até a própria liberdade (como já fez em duas ocasiões), o que lhe faltaria? Com o que ele vinha sonhando? Obviamente, como um sujeito de origem humilde, pouca instrução e tendo crescido num país em que as novelas televisivas são tão populares, o “Chapo” Guzmán queria ele mesmo estrelar uma dessas produções, das quais também é fã e consumidor. E com quem ele fez contato para conseguir isso? Justamente com uma atriz que protagoniza uma série (“La Reina del Sur”), na qual vive o papel de uma poderosa e sensual chefona de cartel _o cartaz está aí em cima, e temos a moça nada menos que disparando em grande estilo uma arma de fogo na nossa cara.
Deixada um pouco em segundo plano no noticiário inicial sobre a captura, uma vez que acompanhada de outra estrela também irresponsável porém mais conhecida _o ator norte-americano Sean Penn_, Kate del Castillo surge como o principal elo entre o “Chapo” Guzmán e a quase realização de seu sonho. Desde 2012, o “Chapo” e Kate conversaram de modo clandestino. Trocaram mensagens, discutiram a adaptação e se encontraram. A atriz recebeu aparentemente de forma amistosa galanteios e flores do monstro. Não lhe ocorreu, de modo nenhum, que deveria denuncia-lo à polícia e às autoridades de seu país, e não seguir agenciando o encontro do bandido com outras pessoas que poderiam viabilizar seu filme. Por que a atriz não mediu a gravidade de sua omissão? Talvez por ignorância de que era um ato ilícito? Difícil. Por que se sentiu lisonjeada de ser cantada por alguém tão mítico (transformado em mito pela TV e meios)? É possível. Mas suponho que, principalmente, porque sabe o poder de arrebatar multidões que teria um filme com o Chapo como estrela. “La Reina del Sur” não é seu primeiro papel de sucesso nesse universo. Em 2009, Del Castillo viveu outra chefona do tráfico, na também exitosa “Weeds” e mudou-se recentemente para Los Angeles para dar impulso em sua carreira.
Quando a série “El Patrón del Mal”, que inspirou “Narcos”, estreou na Colômbia, houve muito debate sobre a conveniência de reviver a história de Pablo Escobar em um programa televisivo. Não vou opinar aqui sobre a qualidade e méritos de ambas. Gostei muito de ver a primeira, e sobre a segunda tenho ressalvas que já apontei. Creio que as duas têm valor artístico. O que acho é que talvez não seja correto revisitar com tanta frequência essas biografias, sem jamais oferecer outros tipos de interpretação do problema. Em geral, os produtos culturais cujo tema é o narcotráfico são sobre a esperteza e o carisma dos chefões, a valentia de policiais que peitam o assunto com base da bala na cabeça dos bandidos ou sobre a malícia e a sensualidade da mulher criminosa. Sempre a solução que surge contra o crime é a bélica, o que ajuda a dar votos a políticos com discurso linha-dura ao norte e ao sul do continente, de Donald Trump a Enrique Peña Nieto ou a Mauricio Macri. Será que não estamos alimentando um sistema perverso que só pode reproduzir-se a si mesmo e provocar mais e mais mortes?
Enquanto Sean Penn brincava de jornalista, usando meios profundamente questionáveis do ponto de vista ético e com apoio da “Rolling Stone”, repórteres estão caindo o tempo todo na linha de frente da notícia no México real, como denunciou bom artigo do “Washington Post”. O autor de “Meia-Noite no México”, Alfredo Corchado, investigador há anos dedicado ao assunto, postou em seu Twitter: “Descrever o encontro entre o Chapo e Sean Penn como uma entrevista é um insulto épico aos jornalistas que morreram buscando a verdade”. Será que devemos deixar que repórteres de verdade sejam dizimados enquanto estrelas de Hollywood ocupam seu espaço para fazer loas aos chefões?
Será que tantos recursos que estão sendo gastos para contar essas histórias sempre no mesmo formato não seriam melhor usados para dar espaço à tão urgente discussão sobre a legalização das drogas de norte a sul do continente?
Deveríamos consumir essa produção com mais responsabilidade e olhar crítico. E demandando novas abordagens. Enquanto muitos curtem e se divertem com os tiros dados pela sexy “Reina del Sur” ou com os assassinatos de políticos travestidos de justiça da vigésima encarnação de Pablo Escobar, na vida real, no interior empobrecido de países corroídos pelo crime organizado, crianças estão sendo recrutadas todos os dias para entrar nas gangues criminosas ou para trabalhar nas plantações de papoula para a produção de heroína para ser contrabandeada. Vale refletir.