“Estallido” argentino faz aniversário, e ainda assusta
Parece difícil de acreditar, ao olhar as imagens de arquivo, que tamanha violência tomou conta da Argentina há exatos 14 anos, quando uma crise econômica levou a uma revolta popular e a uma repressão policial de grandes dimensões, causando a morte de 30 pessoas.
O chamado “estallido”, ocorrido em 19 e 20 de dezembro de 2001, derrubou o presidente Fernando de La Rúa e mergulhou o país num clima de instabilidade política e de dificuldades econômicas apenas superadas anos depois, com a eleição de Néstor Kirchner (1950-2010) e a retomada do crescimento alavancada pelo “boom das commodities”.
Tudo começou quando a política de convertibilidade implementada pelo peronista Carlos Menem em 1991, na qual um peso valia um real, começou a dar sinais de desgaste. Num primeiro momento, funcionou e, às vésperas da eleição de 1999, o candidato que sugerisse terminar com ela, certamente perderia a eleição. Foi com a promessa de mantê-la que o oposicionista De la Rúa chegou ao cargo, chefiando uma aliança de centro-esquerda liderada pela União Cívica Radical. Mas o cenário, porém, já era outro, e mesmo a sucessão de ministros de economia e propostas de ajuste não conseguiram aliviar a situação. Quando Domingo Cavallo anunciou que era necessário um “corralito”, impedindo que as pessoas retirassem dinheiro de suas contas, o país literalmente explodiu.
O filme “Memória del Saqueo”, de Fernando Solanas, é um excelente registro daquele momento e de suas consequências imediatas. A violência que se desatou no período pré-natalino fez as grandes cidades do país, e especialmente o “conurbano” bonaerense, arderem. Saques a lojas e supermercados, desespero diante da brutalidade com a qual a polícia e o Exército tentaram manter o estado de sítio decretado por De la Rúa (os soldados chegaram a arremeter seus cavalos sobre as Mães da Praça de Maio, que também foram às ruas) mostram uma situação completamente fora do controle. As imagens do presidente exasperado fazendo pronunciamentos em que afirmava estar “ganhando a batalha”, mas logo depois contradizendo-se e chamando os peronistas para ajudar num governo de emergência e coalizão são parte desse pesadelo que os argentinos preferiam esquecer. A cena mais vergonhosa também está no filme, e mostra De la Rúa embarcando num helicóptero, no topo da Casa Rosada, e deixando o poder e, posteriormente, o país.
O “estallido” marcou a democracia argentina até os dias de hoje. Se o casal Kirchner foi exitoso e ambos deixaram o poder com alta popularidade, foi porque ancoraram-se na ideia de que estavam reconstruindo a economia do país. E de fato o fizeram, pelo menos até o governo Cristina começar a dar sinais de desgaste político, em 2008, e de mal manejo da economia. A pobreza, que chegaria a 50% pós-2001, cairia pela metade na década seguinte. Tanto Néstor como Cristina, a seu modo populista, ganharam eleições com o discurso de que a oposição destruiria o país se voltasse ao poder, e a prova mais viva disso era justamente o “estallido”, amarga lembrança ainda viva para a população.
Mas foi o “estallido”, também, que tornou possível o surgimento de uma opção como Mauricio Macri, que acabou vencendo as eleições deste ano, marcando um retorno da oposição. Só que, justamente, de “outra” oposição.
O atual presidente lançou-se na política depois daqueles dias tensos de dezembro de 2001, apoiando-se no grito mais frequente das ruas, que dizia “que se vayan todos” (vão todos embora), e mostrava um descontentamento generalizado com a política e os políticos tradicionais. Macri começou, então, a construir sua imagem de bom gestor, bom administrador e, principalmente, de alguém não vinculado aos partidos de sempre. Essa foi a base de sua campanha eleitoral vitoriosa em 2015.
Diante de um ano difícil por iniciar, com desvalorização da moeda e a necessidade de ajustes, o fantasma de 2001 ainda assusta. O desafio de Macri é duplo. Não apenas precisa mostrar rapidamente bons resultados econômicos, revertendo a alta taxa de inflação e fazendo com que o país recupere seu crescimento, como também deve evitar que uma polarização social e política como aquela se repita. A onda a favor causada pelo entusiasmo dos mercados, da opinião pública internacional e da mídia ajuda o presidente. Mas a reduzida diferença de votos com a qual venceu (cerca de 680 mil) mostram uma cisão social ainda latente e certamente atrapalha.
Para o Brasil, o “estallido” fica também como um exemplo assustador. Se o rico país vizinho demorou tanto tempo para se recuperar de uma recessão terrível e de uma crise política gigantesca, que incluiu a saída prematura do presidente eleito, o que poderia acontecer aqui? Resta esperar que as cenas de violência e descontrole social do “estallido” fiquem circunscritas aos livros de história e a documentários como o de Solanas.