Quem fará jornalismo na Argentina de Macri?
Por enquanto, a vaga está aberta.
Desde as últimas semanas da campanha, quando pesquisas passaram a mostrar uma tendência mais clara de que o candidato opositor ao kirchnerismo poderia se transformar no próximo presidente da Argentina, os jornais e emissoras independentes do país mudaram subitamente de tom, rendendo-se a um descarado otimismo.
Até então, os meios argentinos vinham gastando toda sua energia, recursos e bons repórteres para esmiuçar os não pouco numerosos casos de corrupção da gestão Cristina Kirchner, expondo detalhes e anedotas relacionados a escândalos como o das malas de dinheiro do empresário Lázaro Báez, o dos favorecimentos a funcionários públicos alinhados ao governo ou dos hotéis da família suspeitos de lavar dinheiro na Patagônia.
Subitamente, porém, todo esse furor pelo bom jornalismo se esfumou no ar com a perspectiva de mudança de governo.
Meios que sofreram ataques de Cristina nos últimos anos se animaram tanto que mudaram a linha de sua cobertura do processo eleitoral.
Desapareceram as reportagens equilibradas ou com um mínimo do be-a-bá jornalístico e profundidade. Também deixou de ser importante mostrar as debilidades políticas e pessoais do candidato preferido pelos meios. Entraram em cena, então, a propaganda e a torcida aberta por Mauricio Macri, travestidas de jornalismo.
Fico apenas em alguns exemplos. Começou com o jornal “Perfil”, que no dia do primeiro turno demonstrou todo seu alívio e alegria com a partida de Cristina, estampando a mesma manchete (“Chegamos”) usada para celebrar a eleição de 1983, que pôs ponto final numa ditadura militar (1976-83) em que desapareceram cerca de 20 mil pessoas.
Já o Grupo Clarín, o mais prejudicado pela Lei de Meios promulgada por Cristina Kirchner e com quem o governo travou uma batalha quase pessoal desde 2008, não fez por menos para demonstrar sua alegria com a chegada de um novo presidente.
Praticamente todos os seus programas políticos receberam membros do Mudemos nas últimas semanas, como a governadora eleita Maria Eugenia Vidal, a vice Gabriela Michetti, o chefe de governo de Buenos Aires, Horacio Larreta, os ministeriáveis e, obviamente, Macri. A maioria dessas entrevistas (ao contrário do que foi feito com os governistas) foi laudatória e sem perguntas muito complicadas.
No show político “Los Leuco”, estrelado por dois jornalistas, pai e filho, que são famosos na Argentina, foram convidadas personalidades do mundo artístico que votaram em Macri para elogiar e fazer perguntas ao agora eleito, que as respondeu, obviamente, deleitado -nenhuma delas era espinhosa. No jornal em papel, cerca de 8 de cada 10 colunistas repetiam as mesmas ideias: “o ciclo kirchnerista colapsou” e “Macri é a esperança”, com pouquíssimo espaço para dissidências.
Meios independentes passaram a comprar as respostas da campanha macrista para os ataques kirchneristas. Ao ver-se ameaçado após o primeiro turno, o candidato governista Daniel Scioli de fato havia saído na ofensiva em sua propaganda, com mais críticas a Macri do que antes. Mas não houve registro de agressões físicas, nem uso de expressões de baixo calão ou qualquer outro tipo de baixaria. A campanha macrista, porém, reagiu dizendo que aquilo era uma “campanha do medo”. Os meios, solidários e pouco críticos, simplesmente compraram a expressão e a repetiram como se fossem folhetos de campanha do candidato do Mudemos.
O mais grave, porém, é que, às vésperas do segundo turno ou com o presidente eleito, nenhum dos veículos independentes argentinos se animou a expor ou detalhar recentemente as denúncias de corrupção na cidade de Buenos Aires, da qual Macri é prefeito. Nem mesmo de mostrar em que pé estão acusações e e investigações que o envolvem. E a lista tampouco é pequena. Estão aí as escutas ilegais que Macri é acusado de ter armado contra a irmã e o cunhado, causa pela qual teve uma primeira absolvição negada e ainda responde a processo [uma nobre exceção para o jornalista Darío Villaruel, que na Telefé fez o presidente eleito titubear e se enroscar nessa resposta].
Também quase não se falou nas denúncias de que seu amigo e assessor Nicolás Caputo seria beneficiado por contratos de obras para a capital argentina. Ou do fato de ter permitido a derrubada de casas e prédios históricos para a construção de torres e edifícios em locais que o zoneamento não permite. Macri chegou a perder, em 2013, uma disputa com defensores de uma praça, e foi obrigado a replantar as árvores históricas que tinha arrancado sem permissão.
Ou, ainda, sobre o possível vínculo de sua mulher com oficinas têxteis clandestinas. A empresária Juliana Awada e seu irmão, Daniel, responderam a processo por usarem serviços de oficinas que contratavam irregularmente imigrantes bolivianos sem documentos. Awada, já na época primeira-dama de Buenos Aires, foi absolvida, mas o irmão segue processado.
Enfim, a ninguém pareceu pertinente sequer lembrar que o presidente eleito, apesar de significar uma virada de página histórica na Argentina, também tem seus esqueletos no armário.
Alguns comentaristas que resvalaram no assunto logo saíram a defende-lo com uma comparação, afirmando, em linhas gerais, que “o kirchnerismo foi muito mais corrupto”. É bem provável que isso seja verdade. Mas a Justiça não se faz por comparação.
Na televisão, então, o tom celebratório casou perfeitamente com o perfil de “político de farándula” (showbiz) que Macri sempre celebrou. Junto com Juliana, o agora presidente eleito foi a programas de entrevista e de entretenimento para falar de vida pessoal, esporte ou contar como foi o primeiro encontro mágico do casal, para apresentadores encantados em ouvi-los.
O casal também abriu a bela casa de campo de Los Abrojos para mostrar como vive a família num longo vídeo publicado na página do “Clarín”. O jornal usou nada menos que drones para filmar as jogadas de Macri no futebol com os amigos (link para o vídeo abaixo).
O até aqui tão combativo Jorge Lanata até fez perguntas confrontatórias no papo que teve com Macri uma semana antes do debate. Mas aceitou calado que este lhe dissesse com todas as letras que fará o possível para tirar do cargo a atual procuradora-geral da nação, Alejandra Gils Carbó, sem que isso soasse como absurdo num país cuja Constituição garante que a Justiça é independente do poder executivo. Lembre-se que Lanata passou os últimos anos denunciando cada avanço de Cristina Kirchner contra as instituições.
É compreensível que empresas como o Grupo Clarín, o “La Nación” e o Grupo Perfil celebrem o fim de um ciclo que de fato foi muito difícil para a imprensa livre. O governo de Cristina Kirchner criou legislações para debilitar as empresas, apertou anunciantes para que não publicassem anúncios em suas páginas e combateu por meio de discursos em cadeia nacional as suas versões. Um modelo de relação com a imprensa que realmente deve ser descartado para sempre.
Mas nada disso é desculpa para abrir mão do jornalismo. Mais do que nunca, nessa nova fase, a Argentina precisará de bom jornalismo crítico, ainda mais se levarmos a sério o discurso do vencedor do pleito, que tem sido o da defesa da democracia e das instituições. Ambos, sem um jornalismo apartidário e crítico, já sabemos que não funcionam.
Resta torcer para que o oba-oba da mídia argentina seja apenas algo passageiro, e que o jornalismo local substitua esse tom celebratório, de forma rápida, pelo saudável espírito crítico que marcou tantas gerações anteriores do jornalismo argentino.