E a América Latina festeja mais um aniversário de “Dom Quixote”

Sylvia Colombo
Ilustração de Gustave Doré para o "Dom Quixote" (Foto Divulgação)
Ilustração de Gustave Doré para o “Dom Quixote” (Foto Divulgação)

Estive ontem na embaixada da Espanha em Buenos Aires, onde foi celebrado o aniversário de 400 anos do lançamento da segunda parte do “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes (1547-1616). Para quem não tem muita familiaridade com o mundo hispânico, a quantidade de efemérides em torno do escritor e desta obra fundamental da literatura universal pode confundir. Há dez anos, comemoraram-se os quatro séculos do lançamento da primeira parte das aventuras do Cavaleiro da Triste Figura. Já no ano que vem, serão os 400 da morte do autor. E, em parte como preparação para a efeméride de 2016, agora se festeja o lançamento da segunda parte da obra, que veio a público em 1616.

A mesa composta por Federico Jeanmaire, Juan Diego Vila, Malele Penchansky, mediada por Rafael Tóriz, uma mistura de pensadores argentinos e mexicanos, mostrou a amplitude a influência do Quixote nas letras hispânicas e também nas hispano-americanas. A melhor notícia, porém, vem da Espanha, onde a obra está sendo relançada em nova edição a cargo do filólogo e acadêmico Francisco Rico. O novo volume tem 1.345 páginas, com anotações, e mais 1.967 de anexos, mapas e desenhos. A nova edição está a cargo da Real Academia Espanhola, que no ano passado também lançou uma adaptação para jovens, pelas mãos de Arturo Pérez-Reverte _da qual já falei aqui no blog. A iniciativa de lançar o “Quixote” para novas gerações reforça-se pelo fato de que a edição comemorativa lançada em 2005 vendeu milhões na Espanha e na América Latina.

A saga do fidalgo que, por ler muitos livros de cavalaria, acabou enlouquecendo e saindo pelo mundo em busca de aventuras e de justiça, assim, continua a ganhar novos leitores e atualidade. Esta segunda parte, que se celebra agora, traz a particularidade de levantar questões em torno do conceito de “autor” e “personagem”, assim como sobre o significado a autoria naqueles tempos em que releituras e apropriações eram tão comuns. É preciso lembrar que Cervantes não tinha intenção de escrever esse segundo volume do “Quixote” até que o sucesso do primeiro provocasse uma enxurrada de obras apócrifas protagonizadas por seu herói. Quando veio à tona a de um Alonso Fernández de Avellaneda, publicada em 1614, fazendo imenso sucesso, Cervantes se incomodou e contra-atacou com a sua versão da continuação das aventuras do cavaleiro. Nela, denunciava de maneira irônica a versão apócrifa dentro da própria narrativa. A Espanha que surge nessa segunda parte também já é uma Espanha diferente, menos rural e migrando para as cidades.

Escolhida como a obra clássica preferida de escritores de todo o mundo, em pesquisa realizada pela Associação de Escritores Suecos (em segundo ficou “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, e, em terceiro, “Guerra e Paz”, de Tolstói), o Quixote já teve ainda mais de 200 adaptações ao cinema e à TV. Foi equiparado por Harold Bloom, um dos mais importantes críticos de literatura, a Shakespeare. Já Carlos Fuentes dizia que Cervantes vivia no Brasil sob a pele de Machado de Assis, de tanto ver a influência do espanhol no brasileiro. Seria mais do que interessante voltar a discutir a obra do espanhol no Brasil, uma vez que a última edição no país já tem uma década, é a que a editora 34 lançou, bilíngue, com o texto vertido ao português por Sergio Molina.