O cinema argentino convida para jantar

Sylvia Colombo

No variado cardápio do cinema argentino, há algumas produções difíceis de classificar. As de Marcos Carnevale são assim, com um pé no cinema dito “de arte”, outro no mais comercial, o diretor acerta a mão mais uma vez, após os sucessos de “Elsa & Fred”, “Viúvas” e “Corazón de León”. Gosto mais dos dois primeiros do que do último, mas os três têm em comum aquilo que também é o mérito de seu mais recente trabalho, “El Espejo de los Otros”, em cartaz em Buenos Aires. A saber: ótimo casting, boas atuações, roteiro acessível sem ser raso e uma dose certa de humor melodramático.

Estamos no Cenáculo, um restaurante pouco usual. Uma velha catedral gótica, sem teto, escondida por detrás de um muro pichado, isolado, embora em meio a agitada Buenos Aires. O espaço pertence a dois irmãos. Um deles é Benito (Pepe Cibrián), que administra in loco o negócio: coordena a cozinha e interage com os clientes. A outra é Iris (a sensacional Graciela Borges), que fica em casa porém escuta e vê tudo o que dizem os convivas por meio de câmeras instaladas no restaurante e conectadas com sua sala de estar.

O filme se divide em quatro cenas. Cada uma delas corresponde a um jantar no Cenáculo em que algo importante é dito ou se decide. Neste especialíssimo restaurante, atende-se a apenas uma mesa por noite, agendada antecipadamente e aprovada de acordo com a dose de drama que promete, na avaliação dos dois irmãos.

Cada uma das refeições reúne gigantes do cinema e do teatro argentinos. Na primeira, com destaque para a participação de Luis Machín, uma família de milionários destila seu ódio entre irmãos após a morte do pai.

Noutra, o veterano Óscar Mártinez (o pai que tenta subornar o jardineiro em “Relatos Selvagens”) é um homem adentrando a terceira idade que busca um antigo amor para um acerto de contas. Na terceira, o engraçadíssimo Alfredo Casero vive um marido que busca superar uma crise com a mulher, interpretada por Letícia Brédice, por meio de um jogo de encenação.

A última é a mais inesperada e sentimental. A também veterana Norma Aleandro faz uma doente terminal que, por meio da ação de uma amiga, consegue rever sua amante de muitos anos, vivida por Marilina Ross. Tem até beijo gay, sem que o público sequer pisque. Beijo homossexual na TV e no cine argentinos é tão normal, que dá dó o atraso da discussão sobre o assunto no Brasil.

A relação dos irmãos é a principal protagonista da produção, uma espécie de reencarnação do espírito de outro filme estrelado por Graciela Borges, o engraçadíssimo “Dois Irmãos” (2010), onde contracena com Antonio Gasalla. Os personagens que passam pelo Cenáculo fazem com que ambos repassem e analisem suas vidas, suas relações e seus rancores mútuos guardados por décadas.

“El Espejo de los Otros” é um filme muuuuito argentino, não só por jogar luz às particularidades dos vínculos familiares e os afetos deste lado do Rio da Prata, mas também porque seus personagens transitam num mundo em que convivem a lembrança da opulência com a ruína, assim como a história recente do país, entre uma crise cíclica e outra, em que uma determinada classe social um dia tem tudo e no outro, apenas a nostalgia dos bons tempos.

 

Cartaz do filme argentino "El Espejo de los Otros", de Marcos Carnevale (Foto Divulgação)
Cartaz do filme argentino “El Espejo de los Otros”, de Marcos Carnevale (Foto Divulgação)