Suspense peruano investiga sequelas da guerra contra o Sendero Luminoso

Sylvia Colombo
Cartaz do filme "Magallanes" (Foto Divulgação)
Cartaz do filme “Magallanes” (Foto Divulgação)

O elenco desse ótimo filme, “Magallanes”, na seleção dos festivais de Toronto e de San Sebastian, conta com três feras do cinema latino-americano atual: o argentino Federico Luppi (“Lugares Comunes”), o mexicano Damián Alcázar (“El Infierno”) e o colombiano Jairo Camargo (“Bolivar Soy Yo”). A tragédia de fundo que move a trama, porém, não poderia ser mais peruana, e lida com as consequências sociais e psicológicas da longa guerra contra o grupo guerrilheiro Sendero Luminoso _atuante principalmente nos anos 1980-90.

Luppi interpreta com maestria o coronel Rivero, um militar que não se lembra dos abusos que cometeu, mas cujo olhar revela algo de um ressentimento mal-explicado. Trabalha para ele o aparentemente fiel Magallanes (Alcázar), um ex-subordinado seu nos tempos do conflito que se considera um injustiçado. Atualmente motorista de táxi sem muito mais em que se agarrar na vida, Magallanes decide chantagear a família do coronel com fotos dele abusando de uma menina indígena no passado. Como seus ex-companheiros, o personagem vive perseguido pelos fantasmas daqueles tempos. Todos parecem sentir saudades dos terríveis tempos em que estiveram na sangrenta Ayacucho, coração da guerra, porque pelo menos ali pareciam mais relevantes e podiam alimentar suas vaidades.

A execução da chantagem conduz o suspense, que ocorre entre as ruas e avenidas travadas pelo tráfico e nas feiras livres de uma Lima dos dias de hoje. Uma Lima moderna que indica um país que cresceu muito nos últimos anos, mas convive com enormes bolsões de pobreza onde se fala quéchua e os aluguéis estão sempre atrasados. O filme é dirigido por Salvador Del Solar, que fez o capitão Pantoja em “Pantaleão e as Visitadoras”, baseado em obra de Mario Vargas Llosa, e que estréia aqui na direção.

Conversei com Del Solar por e-mail. Após o trailer, a entrevista:

 

Folha – Como juntou tantos atores latino-americanos importantes e por que a ideia de misturar nacionalidades numa história tão peruana?

Salvador Del Solar – Damián Alcázar e Federico Luppi são atores de referência na América Latina. Tanto que, quando imaginava os personagens de Magallanes e do coronel, sentia que devia conseguir atores que se aproximassem ao que eles emanam, alguém como eles. Nunca pensei que fosse possível. Conheci Alcazár em Bogotá. Ele estava gravando uma série dirigida por um amigo. Entreguei-lhe o roteiro, ele o leu no mesmo dia e disse que queria estar no filme! Depois disso, me animei a buscar Luppi, até porque precisava ter um argentino no elenco por conta do acordo de co-produção. Decidi procura-lo diretamente. Ele também topou na hora.

A principal razão para querer os estrangeiros, além dos contratos de co-produção, era que aspirávamos fazer um filme que viajasse além das fronteiras do Peru. Temos a convicção de que devíamos apontar para um território natural em que está o cinema latino-americano e que abarca toda a região. “Magallanes” acaba de estrear no Peru, mas já temos confirmado Chile, Brasil, Argentina, Colombia e muito provavelmente México.

Folha – O Peru está mais maduro, hoje, para discutir a guerra contra o Sendero Luminoso e o que representaram aqueles anos?
Del Solar – Não sei se alcançamos maturidade a esse respeito. Mas o tempo passou, é verdade. Se não temos maturidade, pelo menos temos certa distância, certa perspectiva.

Politicamente, vivemos tempos de grande polarização e é difícil dialogar sobre o que ocorreu. Interessam menos os fatos e as vítimas que as posturas políticas que cada setor considera que deve manter. Não há conversa, cada um reza seu próprio credo político, buscando fortalecer uma identidade que o distinga de seus adversários.

Num contexto assim, o exercício político principal é a desqualificação do oponente, o questionamento dos fatos e sua rotulação como “versões politizadas”. Tudo isso é cruel com as vítimas e seus familiares e amigos, que desaparecem no meio desse simulacro de diálogo. E é ruim para o país, que teria de fazer esforços ainda maiores para entender-se e conciliar-se.

Ainda assim, a literatura, o teatro e o cinema têm dirigido seu olhar para esses anos e suas sequelas, conseguindo, pelo poder das histórias, da realidade concentrada que a ficção pode oferecer, fazer com que comecemos a nos olhar, nos incomodar. Que comecemos, finalmente, a falar desse período.

Folha – Como vê a seu país hoje? No ano que vem, há eleições. Crê que pode ocorrer uma mudança estrutural profunda?
Del Solar – Durante mais de duas décadas, o Peru tem mantido um rumo macroeconômico orientado ao controle da inflação, ao fomento do investimento privado, à consolidação do mercado como mecanismo condutor da economia e a preocupação permanente pelo crescimento do PIB [que chegou a 9%/10% na última década] como principal orientador do nosso bem-estar.
Isso trouxe importantes benefícios materiais e coincidiu com um contexto internacional que por muitos anos foi favorável para a América Latina.

Tenho a impressão que existe, como consequência disso, um certo nível de consenso sobre o fato de que o país deveria continuar por este caminho _talvez seja a primeira vez em toda a história republicana do Peru que o país segue um mesmo rumo macroeconômico por tantos anos. Por isso, não creio que nas próximas eleições exista uma mudança drástica nesse sentido.

Mesmo assim, agora que o crescimento econômico diminui de maneira considerável, começam a ser evidentes os grandes problemas que continuamos tendo, como a falta de solidez institucional, a carência de um Estado forte, as ainda tremendas desigualdades, a escandalosa corrupção, a crecente insegurança.

Penso que é importante tomar decisões que busquem corrigir nossas grandes falências sem cair no erro de jogar fora os avanços dessas décadas, em que muito foi alcançado.