Memórias de Ricardo Piglia viram filme

Sylvia Colombo

“Não há nada mais ridículo que escrever um diário. Mas creio que, se não tivesse começado a escreve-lo naquela tarde, jamais teria escrito outra coisa.” Assim resume Ricardo Piglia, 73, o que significam os 327 cadernos de anotações cotidianas que fez desde a adolescência. Guardados em 40 caixas, os volumes não são iguais, variam de cor, de encadernação, de formato. Quando o documentário “327 Cuadernos” começa, o escritor argentino está de mudança dos EUA, onde lecionou em Princeton, para Buenos Aires. A câmera o acompanha encaixotando e desencaixotando livros. Para os cadernos, lança um olhar meio de temor, meio de atração. “Eu já quis reler todos de uma vez, mas é difícil. Reviver toda a sua vida, dia após dia, não é uma coisa fácil”, explica.

Mas o fato é que o diretor Andrés Di Tella conseguiu convence-lo, e montou esse excelente filme, em cartaz em Buenos Aires. Nele, Piglia lê suas anotações, comenta seu contexto, relembra familiares e amigos. O autor de “Respiração Artificial” (1980) teoriza sobre a aleatoriedade da memória e que efeitos ela causa, ao lembrar de um comentário fugaz que seu pai fez durante a viagem em que saíram de sua Adrogué natal para Mar Del Plata. “Por que essa frase sem importância sempre me volta à cabeça?”. E conta que por muito tempo fantasiava sobre o que ocorreria se ele nunca deixasse a casa em que nasceu, nessa localidade na província de Buenos Aires, espelhando-se na vida de um irmão que ali ficou.

O filme reúne uma rica seleção de imagens do passado recente da Argentina, todas pautadas pelas lembranças de Piglia. Elege como momentos históricos de grande importância para ele a queda de Perón, em 1955, por um golpe militar, a morte de Che Guevara, em 1967, e o retorno de Perón, em 1973, que provocou o terrível massacre de Ezeiza. Di Tella foi buscar entrevistas a populares, registros desses personagens e de como era a Buenos Aires de então.

No meio da rodagem, porém, Piglia fica doente. Diagnosticado com uma enfermidade degenerativa, tem dificuldades para escrever e começa a passar por tratamento. De cortar o coração quando surgem as páginas em branco dos diários, apenas com a marcação “no puedo escribir” (não posso escrever). O escritor porém segue, com a ajuda de alguém que anota o que diz, e com a paciência da equipe de produção. Nota-se que Di Tella passou a gravar tudo com mais urgência, as recordações, os gestos do escritor, numa atitude de muito respeito artístico.

O filme coincide com a publicação parcial desses diários. “Eu queria que fossem assinados como as memórias de Emilio Renzi, para que a realidade e a ficção não se distinguissem”, diz o autor _Renzi é o personagem que criou como alter ego.

O caráter de encerramento de carreira de filme e livros provoca melancolia em quem assiste e lê. Por outro lado, saber que estamos contando com os últimos tempos de lucidez desse grande autor, enquanto ele ainda pode refletir e comentar a própria obra é um privilégio. Tomara que “327 Cuadernos” seja levado para exibição no Brasil.

O escritor argentino Ricardo Piglia (Foto El Universal)
O escritor argentino Ricardo Piglia (Foto El Universal)