“El Clan”, os irmãos Born, Macri e os sequestros que revelam uma Argentina clandestina
A história argentina do século 20 é pródiga em crimes políticos cujas motivações e desenlaces nunca ficaram completamente esclarecidos. É o caso da desaparição das mãos do cadáver de Perón, da queda do helicóptero em que viajava o filho de Carlos Menem ou do suposto suicídio do empresário Alfredo Yabrán. Além de, mais recentemente, a misteriosa morte do promotor Alberto Nisman, que se preparava, em janeiro, para apresentar uma denúncia contra a presidente Cristina Kirchner.
Pois “El Clan”, o novo filme do cineasta Pablo Trapero (“Leonera” e “Abutres”) que está na seleção do festival de Veneza, conta um desses quebra-cabeças que são impossíveis de completar sem conhecer os bastidores, e às vezes os bastidores dos bastidores, da política.
Numa leitura rasa, entendemos apenas que o chefe do clã Puccio, Arquimedes, é um psicopata que convence os parentes imediatos a serem cúmplices de uma série de sequestros que promove com a finalidade de cobrar os resgates. O que torna a história mais cruel é que tudo ocorria num território familiar. As vítimas eram pessoas próximas a ele ou ao filho, Alejandro, uma estrela do rúgbi local. E mais, eram mantidas em cativeiro dentro da própria residência dos Puccio. Frio e calculista, Arquimedes (interpretado de forma espetacular por Guillermo Francella, de “O Segredo de Seus Olhos”) pedia pessoalmente o resgate, desde orelhões da vizinhança. Mesmo sendo pagos, matava suas vítimas.
Trapero dá dicas da relação entre essa terrível história com o contexto político em que ocorreu. Não chega, porém, a ser suficientemente didático, o que pode tornar o filme enigmático demais para plateias estrangeiras. A trama se passa nos anos 80, na transição do governo ditatorial para a democracia, com a eleição de Raúl Alfonsín (1927-2009). Arquimedes é um membro da da SIDE (serviço secreto). O fim da ditadura também representa para ele uma aposentadoria repentina. Sente falta não apenas do dinheiro, mas do alto cargo e da posição na sociedade. Não se conforma em apenas cuidar do negócio familiar ou de gastar suas horas varrendo a calçada do bairro de San Isidro, onde vivia.
Os sequestros, realizados com a ajuda dos filhos e de ex-colegas de carreira, se transformam, então, numa nova atividade. As técnicas, eles já dominavam porque as punham em prática nos anos de chumbo. A sensação de que isso poderia ser algo “errado” sequer era sentida, após tantos anos de convivência com esse tipo de ação ilegal.
No fundo, “El Clan” mostra isso, como a sociedade argentina saiu doente do período ditatorial. A história acabou mostrando como uma simples ida às urnas não curaria de uma só vez as chagas abertas no período.
Há outros exemplos de como a política orientou crimes por dinheiro numa época de forte enfrentamento e polarização. Um deles é o caso dos irmãos Born, que daria outro filme fantástico. Em 1974, Perón havia se afastado dos Montoneros, discordando de suas práticas. Logo depois da morte do general, nesse mesmo ano, a organização guerrilheira de esquerda passou à clandestinidade e precisava de fundos para manter suas atividades. Os montoneros planejaram, então, o sequestro dos empresários Juan e Jorge Born, pelo qual pediram nada menos do que US$ 60 milhões. O que foi feito desse dinheiro alimenta até hoje um jogo de especulações e um rico folclore, que envolveria até a compra de empresas de grupos de mídia hoje atuantes. Tudo isso está contado em “Born” (Sudamericana) da jornalista Maria O’Donnell.
Outro caso, que se refere ao período eleitoral atual é o sequestro do candidato Mauricio Macri, em 1991. Filho de um dos mais ricos empresários do país, o italiano Franco Macri, Mauricio foi abordado na porta de casa e mantido refém por doze dias até o pagamento do resgate de US$ 6 milhões. O crime foi cometido pela chamada “banda de policias”, um grupo de agentes que havia continuado a realizar sequestros e a fazer desaparecer gente, mesmo depois de finda a ditadura, com o único intuito de arrecadar dinheiro.
“El Clan” tem lotado as salas na Argentina, e merece. É um filme e tanto. E faz pensar em o quanto a política atual do país ainda ocorre nos bastidores, onde negócios paralelos, escambo de influências e cargos, sequestros e mortes inexplicadas alimentam um macabro folclore local, infestado de casos escabrosos como o do clã Puccio.