“El Clan”, os irmãos Born, Macri e os sequestros que revelam uma Argentina clandestina

Sylvia Colombo
Cartaz do filme "El Clan", com Guillermo Francella no papel de Arquimedes Puccio (Foto Divulgação)
Cartaz do filme “El Clan”, com Guillermo Francella no papel de Arquimedes Puccio (Foto Divulgação)

A história argentina do século 20 é pródiga em crimes políticos cujas motivações e desenlaces nunca ficaram completamente esclarecidos. É o caso da desaparição das mãos do cadáver de Perón, da queda do helicóptero em que viajava o filho de Carlos Menem ou do suposto suicídio do empresário Alfredo Yabrán. Além de, mais recentemente, a misteriosa morte do promotor Alberto Nisman, que se preparava, em janeiro, para apresentar uma denúncia contra a presidente Cristina Kirchner.

Pois “El Clan”, o novo filme do cineasta Pablo Trapero (“Leonera” e “Abutres”) que está na seleção do festival de Veneza, conta um desses quebra-cabeças que são impossíveis de completar sem conhecer os bastidores, e às vezes os bastidores dos bastidores, da política.

Numa leitura rasa, entendemos apenas que o chefe do clã Puccio, Arquimedes, é um psicopata que convence os parentes imediatos a serem cúmplices de uma série de sequestros que promove com a finalidade de cobrar os resgates. O que torna a história mais cruel é que tudo ocorria num território familiar. As vítimas eram pessoas próximas a ele ou ao filho, Alejandro, uma estrela do rúgbi local. E mais, eram mantidas em cativeiro dentro da própria residência dos Puccio. Frio e calculista, Arquimedes (interpretado de forma espetacular por Guillermo Francella, de “O Segredo de Seus Olhos”) pedia pessoalmente o resgate, desde orelhões da vizinhança. Mesmo sendo pagos, matava suas vítimas.

Trapero dá dicas da relação entre essa terrível história com o contexto político em que ocorreu. Não chega, porém, a ser suficientemente didático, o que pode tornar o filme enigmático demais para plateias estrangeiras. A trama se passa nos anos 80, na transição do governo ditatorial para a democracia, com a eleição de Raúl Alfonsín (1927-2009). Arquimedes é um membro da da SIDE (serviço secreto). O fim da ditadura também representa para ele uma aposentadoria repentina. Sente falta não apenas do dinheiro, mas do alto cargo e da posição na sociedade. Não se conforma em apenas cuidar do negócio familiar ou de gastar suas horas varrendo a calçada do bairro de San Isidro, onde vivia.

Os sequestros, realizados com a ajuda dos filhos e de ex-colegas de carreira, se transformam, então, numa nova atividade. As técnicas, eles já dominavam porque as punham em prática nos anos de chumbo. A sensação de que isso poderia ser algo “errado” sequer era sentida, após tantos anos de convivência com esse tipo de ação ilegal.

No fundo, “El Clan” mostra isso, como a sociedade argentina saiu doente do período ditatorial. A história acabou mostrando como uma simples ida às urnas não curaria de uma só vez as chagas abertas no período.

Capa do recém-lançado "Born", de Maria O'Donnell (Foto Divulgação)
Capa do recém-lançado “Born”, de Maria O’Donnell (Foto Divulgação)

Há outros exemplos de como a política orientou crimes por dinheiro numa época de forte enfrentamento e polarização. Um deles é o caso dos irmãos Born, que daria outro filme fantástico. Em 1974, Perón havia se afastado dos Montoneros, discordando de suas práticas. Logo depois da morte do general, nesse mesmo ano, a organização guerrilheira de esquerda passou à clandestinidade e precisava de fundos para manter suas atividades. Os montoneros planejaram, então, o sequestro dos empresários Juan e Jorge Born, pelo qual pediram nada menos do que US$ 60 milhões. O que foi feito desse dinheiro alimenta até hoje um jogo de especulações e um rico folclore, que envolveria até a compra de empresas de grupos de mídia hoje atuantes. Tudo isso está contado em “Born” (Sudamericana) da jornalista Maria O’Donnell.

Mauricio Macri, ao ser liberado após sequestro, em 1991 (Foto Clarín)
Mauricio Macri, ao ser liberado após sequestro, em 1991 (Foto Clarín)

Outro caso, que se refere ao período eleitoral atual é o sequestro do candidato Mauricio Macri, em 1991. Filho de um dos mais ricos empresários do país, o italiano Franco Macri, Mauricio foi abordado na porta de casa e mantido refém por doze dias até o pagamento do resgate de US$ 6 milhões. O crime foi cometido pela chamada “banda de policias”, um grupo de agentes que havia continuado a realizar sequestros e a fazer desaparecer gente, mesmo depois de finda a ditadura, com o único intuito de arrecadar dinheiro.

“El Clan” tem lotado as salas na Argentina, e merece. É um filme e tanto. E faz pensar em o quanto a política atual do país ainda ocorre nos bastidores, onde negócios paralelos, escambo de influências e cargos, sequestros e mortes inexplicadas alimentam um macabro folclore local, infestado de casos escabrosos como o do clã Puccio.