Murmúrios e almas penadas de Juan Rulfo completam 60 anos
“Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal Pedro Páramo. Minha mãe me disse. E eu lhe prometi que viria a vê-lo depois que ela morresse. Apertei suas mãos indicando que o faria, pois ela estava morrendo e eu, na situação de prometer-lhe tudo. ´Não deixe de ir visita-lo´, me recomendou. Seu nome é diferente. Estou certa de que ele gostará de te conhecer.´ Então não pude fazer outra coisa, mas dizer-lhe que assim o faria, e de tanto dize-lo, continuei dizendo, mesmo depois que minhas mãos tiveram trabalho para soltar-se de suas mãos mortas.” (*)
O principal romance da literatura mexicana, e um dos mais importantes do mundo no século 20, completa seis décadas de publicação. Enquanto no México o aniversário é celebrado, no Brasil só com muito custo podem-se encontrar exemplares de “Pedro Páramo”, de Juan Rulfo (1917-1986). Nas principais livrarias virtuais, as edições lançadas pela Paz e Terra (trad. Eliane Zaguri, 1998) e Record (trad. Eric Nepumoceno, 2004) estão esgotadas, e não parece haver movimento para reeditar o livro na comemoração da efeméride.
“Pedro Páramo”, cujo título inicial era “Los Murmullos”, conta a história do jovem Juan Preciado, que viaja à cidade de Comala, a princípio a contragosto, para atender o último desejo da mãe, que acaba de morrer. Nada parece inusual, até que o viajante começa a perceber que seu caminho não apenas não tem volta, como destina-se a um local e tempo que não alcança entender. Às portas de Comala, cidade em ruínas, sabe mais detalhes sobre o pai. Páramo era um cacique local, um homem cruel que destratou mulheres e filhos, e que já estava morto havia muitos anos. O rapaz se espanta. Está num lugar desconhecido, mas todos parecem saber quem ele é. Entre as pessoas com quem fala, alguns também se dizem filhos de Páramo. Logo, vai dando-se conta de que não apenas o pai morrera, mas que todos os que encontra naquela localidade esquecida estão, também, mortos. E, como se não bastasse, quando o romance já vai pela metade, o próprio protagonista morre, e se desvanece na narrativa, enquanto a história se divide entre a Comala do tempo em que as pessoas nela viviam e a de agora, onde as almas apenas vagam sem rumo e sem destino. É o momento em que o leitor tende a ficar mais incomodado, e retornar ao parágrafo inicial confirma essa sensação. Preciado diz “vim a Comala”, e não “fui a Comala”. Ou seja, a narrativa vem das entranhas do mundo dos mortos, de onde o protagonista jamais saiu e provavelmente ainda está no momento em que o lemos.
O mundo que Rulfo retrata aí é o do abandono que predomina no México profundo até os dias de hoje. Tendo nascido no Estado de Guadalajara e crescido nos povoados do interior, o escritor vivenciou como predominavam a pobreza e a violência nessas regiões no período após a Revolução Mexicana (1910) e a Guerra Cristera (1926-1929). No original em espanhol, é possível notar como Rulfo incorporou o modo de falar, as palavras usadas na região e principalmente os silêncios que predominam na comunicação entre os que aí vivem. Em Comala, ninguém mais vive, estão todos condenados a um limbo em que nada ocorre, almas penadas que apenas repetem um tempo em que foram miseráveis e que jamais terá fim. Como comentou o escritor Juan Villoro certa ocasião, “Pedro Páramo” é um romance sobre “gente tão esquecida a quem está proibido até que mesmo que algo lhe aconteça”. Viajar pelo interior de alguns Estados hoje é entender a longa história e a atualidade desse texto de poucas palavras.
Houve quem localizasse a obra no nascedouro do “realismo mágico”, por ser uma inspiração e referência declaradas de Gabriel García Márquez (1927-2014). Também foi definido como livro fundamental de um chamado “modernismo gótico” local. Mais do que os rótulos, o romance interessa pelo diálogo direto com a relação peculiar que os mexicanos sempre tiveram com a morte. Ao mesmo tempo, é um retrato social das consequências da violência e da sequência de guerras que o país viveu desde o começo do século passado. Se o livro em português é difícil de achar, pelo menos o filme completo está no youtube.com e também é outro clássico (link abaixo). Lançado em 1967, dirigido por Carlos Velo, tem roteiro de Carlos Fuentes e cinematografia de Gabriel Figueroa.
Homem de poucas palavras, Rulfo escreveu pouco. Além de “Pedro Páramo”, lançado quando tinha 38 anos, publicou “El Llano en Llamas” (1953), fez roteiros e fotografou muito. Sua obra vale ser conhecida e celebrada.
(*) tradução minha mesmo, como não encontrei a edição esgotada em português, traduzo do original em espanhol